Nota de editor:
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quantidade de erros tipográficos existentes neste texto,
foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No final deste livro
encontrará a lista de erros corrigidos.
Rita
Farinha (Jan. 2008)
ADOLPHO CAMINHA
NO PAIZ
DOS
YANKEES
DOMINGOS DE MAGALHÃES―EDITOR
54 RUA DO OUVIDOR 54
LIVRARIA MODERNA
RIO DE JANEIRO
1894
NO PAIZ DOS YANKEES
cruzador "almirante barroso"
ADOLPHO CAMINHA
NO PAIZ
DOS
YANKEES
RIO DE JANEIRO
Domingos de
Magalhães―editor
54 rua do ouvidor 54
LIVRARIA MODERNA
1894
Do mesmo autor:
A NORMALISTA
I vol. broc. 3$. cnc. 5000
Em
preparação:
BOM―CRIOULO
Typ.
da Empreza Democratica
Editora―Rua do Hospicio n. 11
Taine, o glorioso Taine, o querido
philosopho, cuja obra admiravel
tem sido uma especie de bussola para
os que se iniciam na complicada arte
da palavra; Taine, o mestre, aconselhava
sabiamente, com aquella profundeza
de vista e com aquelle raro e
superior criterio de artista e pensador:―«Que
chacun dise ce qu'il a
vu, et seulement ce qu'il a vu; les
observations, pourvu qu'elles soient
personnelles et faites de bonne foi,
sont toujours utiles.»
[6]
Devo a estas palavras a lembrança
de escrever as multiplas impressões,
os successivos transportes
de admiração, de jubilo e tristeza
por que passou meu espirito durante
alguns mezes de viagem nos Estados-Unídos.
A principio afigurou-se-me obra
de alevantado alcance e de extrema
coragem traçar, ainda que ligeiramente,
o plano de um livro sobre a
grande nação americana, tão singular
em seus costumes, em sua vida
[7]
agitada e tumultuosa, em seus variadissimos
aspectos...
E de facto, esse trabalho, essa
difficil tarefa demandaria, incontestavelmente,
muito mais que uma
somma de notas mais ou menos verdadeiras
e algum estylo. Era preciso, antes
de tudo, um elevado criterio
historico e scientifico, grande cópia
de conhecimentos e profundo espirito
analytico.
Não se escreve a historia de um
paiz,―a vida inteira de um povo―sem
[8]
demorar-se em largo e paciente
estudo sobre as suas origens, seus
habitantes primitivos, sua evolução
politica e social, suas luctas intestinas
e sobre os elementos que mais
directamente influíram para sua independencia.
A elles, os historiadores e analystas da
sciencia, tão arriscada empreza.
Os poucos mezes que passei nos
Estados-Unidos apenas me proporcionaram
ensejo de admirar, atravéz
de um prisma todo pessoal, o progresso
[9]assombroso
d'esse extraordinario
paíz.
Comprehendem-se, pois, os meus
intuitos: nada mais que reproduzir,
com a possível exactidão,
o que
vi,
somente
o que vi nessa interessante
viagem ao paiz dos
yankees.
Procurei ser espontaneo e simples,
natural e logico, evitando
exageros de observação e o estylo
rebuscado e palavroso dos que, á fina
força, pretendem transformar a litteratura
n'uma simples arte mecanica
[10]de
construir phrases ôcas e coloridas.
Escriptas em 1890, as paginas
que se vão ler podem não ter a importancia
de um estudo completo, mas
de algum modo têm seu valor intrinseco.
Rio, 1º de Agosto de 1893.
Ad. Caminha
NO PAIZ DOS YANKEES
I
...Tinha cessado a faina geral de suspender
ancora. Os marinheiros estavam todos em
seus postos, alerta á primeira voz, silenciosos,
enfileirados a bombordo e á boréste, alguns
convenientemente distribuidos na pôpa, na
prôa e nas cobertas do cruzador.
Noite escura e chuvosa, cheia de nevoeiro
e tristeza, fria, sem estrellas, cortada de clarões
longinquos. Tão escura que se não distinguia
um palmo diante do nariz, tão feia que
os bicos de gaz da cidade, soturna e quieta,
bruxoleavam pallidamente com a sua luz tremula
e vacillante...
[12]
E comtudo estavamos a 19 de Fevereiro,
em plena estação calmosa, no rigor do
verão.
Chuvera todo o dia. O céo conservava-se
coberto de nuvens bojudas e côr de chumbo,
velando uns restos de lua.
Um grande silencio de alto mar alastrava-se
por toda a bahia do Rio de Janeiro.
Sómente ao longe, para os lados da cidade,
badalava o sino d'uma egreja, compassado e
lugubre.
De vez em quando passava rente com a
pôpa do
Barrozo o vulto
sombrio e largo de
uma barca Ferry, com o seu pharól de côr,
dezerta, indistincta, e que desapparecia logo
na escuridão.
Seria meia noite quando o navio começou
a mover-se lentamente, caminho da barra,
cheio da silenciosa melancolia dos que partiam,
e uma hora depois a cidade, as praias, e as
montanhas sumiam-se na distancia, como si o
mar as fosse engolindo com a voracidade de
um monstro.
Restava apenas um ponto luminoso, uma
visão microscopica da terra fluminense; era o
[13]
pharol da ilha Rasa tremeluzindo, como palpebra
somnolenta, atravéz da noite.
E todos a bordo, todos silenciosamente,
egoistas na sua dôr concentrada e incommunicavel,
mandaram ainda um―adeus―profundamente saudoso
á vida alegre e ruidosa do Rio.
Dizem que o homem do mar é insensivel
aquelles que nunca viram esta realidade: a
lagryma da saudade brilhar na face de um
marinheiro.
Lá fomos mar afóra...
Pernambuco foi o primeiro porto da nossa
escala.
Viagem monotona, sem accidentes notaveis,
essa do Rio ao Recife. As horas succediam-se
n'uma uniformidade tediosa e imperturbavel.
Sempre o mar, sempre o céo, ora
sombrios, ora azues...
Durante o dia 21 avistámos, e isso nos
consolou,
uma vela que bordejava,
muito
branca, triste garça erradia no horisonte
luminoso.
Para quem viaja no mar uma vela que se
avista é sempre motivo de innocente alegria
[14]
O marinheiro com especialidade gosta de
seguil-a com o olhar nostalgico até perdel-a
completamente. É como ao avistar-se terra
depois de longa travessia: sente-se a mesma
impressão bôa e indefinivel.
Na manhã de 26―léste-oeste com o pharol
de S. Agostinho, e ás onze horas recebiamos
o pratico.
Impossivel entrar nesse dia, por falta de
maré: passámos a noite fóra, no
Lamarão, aos
solavancos, vendo, por um oculo, a cidade do
Recife, illuminada e bella, hombro a hombro
com a legendaria Olinda dos hollandezes e
dos banhos de mar.
Na falta de outro assumpto falou se de
historia patria.
Pela manhã de 27 o
Barrozo sulcava
as aguas do Lamarão, lento e magestoso,
crivado de olhares. O povo saudava-o do
cáes da Lingueta. Espalhou-se logo que o
principe D. Augusto, neto do imperador,
vinha a bordo, e toda a gente correu a recebel-o
com essa avidez instinctiva das massas
populares. O povo pernambucano, tradicionalmente
[15]inimigo dos
imperadores, lembrava-se
do tempo em que o Sr. D. Pedro de
Alcantara dava-se ao luxo de visitar o
norte.
Mais tarde, ao desembarcar a turma de
guardas-marinha, de que fazia parte o principe,
subiu de ponto a curiosidade publica.
―Oh! o principe!―Que é d'elle?―É
um ruivo?―É aquelle barbado?
O pobre moço viu-se em apuros, e mudava
de côres, e fazia-se escarlate, e vociferava
contra a plebe, occultando-se entre os
collegas, desapontado. Um preto velho teve
a lembrança de ajoelhar-se aos pés de S. A.
e supplicar-lhe uma esmola. Aconteceu,
porém, que errou o alvo e foi direito a
um outro rapaz, louro e rubro, como o principe,
que se apressou em desfazer o engano.
O imperial senhor achava-se ridiculo no
meio de toda aquella multidão servil e anonyma
que o acompanhava, «como si visse
n'elle um animal selvagem...»
É assim o povo―ingenuo, pueril.
Visitámos, em romaria, os principaes edificios
[16]publicos: a Penitenciaria,
a Assembléa
Provincial, o Gymnasio, o Theatro.
A nova Penitenciaria do Recife é um
bello edificio no genero.
Impressiona tristemente esse casarão sombrio
com escadarias de ferro, onde mal penetra
a claridade meridiana.
Ha criminosos de toda a especie, em
cujos semblantes retratam-se delictos tenebrosos.
Nada, porém, nos commoveu tanto como
a historia do preso Gustavo Adolpho, que, ha
quasi vinte annos, cumpria a terrivel sentença
a que fôra condemnado. Era um d'esses sentenciados
sympathicos que inspiram compaixão
a quem os observa de perto.
Um dos nossos companheiros desejou
saber a historia do seu crime e pediu ao infeliz
que lh'a contasse elle proprio.
―Não queira, disse o condemnado, não
queira obrigar-me a fazer minha propria
autopsia moral... Narral-a, essa historia,
seria um supplicio muito maior do que estar eu
aqui, n'este carcere, ha vinte annos...
Gustavo Adolpho parecia-nos um regenedo,
[17]
tal o aspecto humilde de sua
physionomia
e o tom commovente de sua voz. O isolamento
transformara-lhe a alma. A dôr tem
isto de bom―purifica o espirito, é como um
crysol. Esse infame, esse assassino, Gustavo
Adolpho, era um martyr. Aquelle semblante
abatido pelas insomnias, aquelle rosto descarnado,
aquelles olhos cansados de chorar,
aquelles labios lividos de defunto, cansados de
repetir a palavra―perdão, lembravam a figura
resignada de um moribundo que nada mais
espera senão a eterna liberdade―a morte...
Vimol-o na casa dos condemnados, entre
as quatro paredes de um miseravel cubiculo,
vestido de preto, barba crescida, macilento,
arrependido e só.
Poucos iam incommodal-o ali, n'aquella
pavorosa solidão, e no emtanto elle não odiava
ninguem e desejava falar a todos.
Tinha dezenove annos quando a fatalidade
o arremessou a Fernando de Noronha.
A justiça humana o havia condemnado a esta
pena infamante―galés perpetuas.
Perdoar a um arrependido nas condições
[18]
de Gustavo Adolpho, me parece a mais
nobre acção de um rei. Todavia elle continuava,
mendigo de liberdade, a pedir, a pedir...
Por diversas vezes a academia de direito,
pelo orgão de seus representantes, exorara
a piedade imperial, mas o imperador nunca
estendeu o seu
magnanimo olhar
até aos carceres
senão em certos dias de gala natalicia
para indultar os escolhidos da politica dominante.
―Console-se, disse eu ao desventurado
moço. E citei Lamartine:―
Vivre c'est
attendre...
Retirámo-nos commentando aquella catastrophe
desastrada.
A historia tragica d'esse preso foi-nos
contada por um empregado do estabelecimento.
Eu podia resumil-a em duas palavras:―
cherchez
la femme, si não fosse o prurido
de registrar, ainda que brevemente, um caso
curioso de processo crime. Cada um tire as
illações que lhe aprouverem.
Gustavo Adolpho nasceu no Pará onde
iniciou seus estudos como seminarista.
[19]
Muito cedo seu espirito mostrou-se refractario
á educação ecclesiastica, e desviou-se
dos livros sagrados para outro genero de
leituras e estudos mais concentaneos com as
suas aspirações.
Os paes do nubil seminarista desgostaram-se
com o procedimento do filho revolucionario
e ardente apologista de Martinho Luthero, que
não occultava-lhes suas tendencias anti-catholicas.
Elle, porém, o apostata, o hereje, sentia-se
instinctivamente arrebatado pelas idéas
do seculo e tratou de trocar a sotaina de
noviço pelo frak á ultima moda. Ninguem
põe peias á fatalidade. Não contente
com ir
de encontro á vontade de seus paes e preceptores,
o ex-seminarista tomou o primeiro vapor,
e, subito, vio-se na capital do Brazil, sem
um amigo que o guiasse n'esse labyrintho de
ruas suspeitas onde o vicio assentou praça. A
rua do Ouvidor e os theatros sempre eram
mais agradaveis que o claustro e as impertinencias
do reitor,―muito mais...
Pobre Gustavo Adolpho! Salvara-se de
um abysmo para precipitar-se imprudentemente,
[20]como
creança inexperta, n'outro abysmo
talvez mais perigoso.
Sem amigos, sem protecção, longe de sua
terra e de seus paes,―que podia esperar o
joven desconhecido n'aquelle turbilhão de vis
interesses?
Imbert-Galloix, um italiano, tambem adolescente
e cheio de esperanças, intelligente e
trabalhador, morreu de miseria n'uma rua de
Pariz, por ter trocado sua patria natal por
um paiz que só conhecia de nome. Fôra em
busca de glorias e encontrou a miseria, o frio,
a fome, e a morte por fim.
Esses sonhadores como Imbert-Galloix
são sempre victimas da propria
imaginação.
A sorte de Gustavo Adolpho foi mais
cruel.
Custa a crêr que um insignificante par
de brincos leve um homem á cadeia e depois
ao exilio perpetuo!
Uma vez sem meios de subsistencia,
luctando com a má vontade de uns e a indifferença
de outros, Gustavo Adolpho, que
tinha certa dóse de espirito, d'esse espirito
[21]
fino que caracterisa o homem de talento,
fez-se
bohemio, isto é,
indifferente á vida,
nomade a quem tanto faz dormir sobre flacido
colxão, como ao relento e sobre a lage das
calçadas. Ora, os bohemios são umas creaturas
sympathicas. Quando um bohemio
tem espirito acha sempre quem lhe estenda
a mão. Gustavo Adolpho preferiu a mão
leve, alva e setinosa, de uma cortezã pela
qual apaixonou-se devéras.
A mulher, sempre essa creatura profundamente
seductora e mysteriosa!
E, parece incrivel! quando na primeira
noite, após as ineffaveis caricias do amor, a
misera Manon, adormecida ao lado do amante,
sonhava, talvez, n'algum banquete sumptuoso,
á sombra d'alamos frondosos, talvez n'alguma
de suas passadas orgias, á luz de candelabros
deslumbrantes, elle, o malaventurado
moço, cujo olhar fitava na meia sombra da alcova
o rosto sereno de sua amante, antepensava
um crime e um crime excepcional, monstruoso,
inqualificavel.
―Estes brincos, estes brincos... pensava
[22]
elle fitando as joias, duas grandes lagrimas
de diamante pendentes das orelhas da rapariga.
Seu espirito oscillava como um pendulo
na duvida terrivel, aguçado por um desejo
louco.
Eil-o que se levanta de um impeto,
pisando devagar, surrateiramente, tão de leve
que dir-se-ia uma sombra; eil-o que se encaminha
para a porta da rua, tacteando, encostando-se
as paredes, pé ante pé, sem respirar,
olhando sempre para traz, para o leito da
amante (lembra-me a scena da «Cymbelina» de
Shakspeare).
Meia noite... Eil-o ainda que volta e se
approxima do leito onde ha pouco boiara em
mar de volupia. Traz na mão um objecto
reluzente, uma cousa disforme... uma machadinha.
Que irá elle fazer?!...
Approxima-se mais, rastejando quasi,
mansamente, subtilmente.
De repente sôa uma pancada surda, e um
grito estrangulado:―Soc...corro! Sôa outra
pancada surda, outra, outra, muitas pancadas,
[23] e sobre os brancos
lençóes d'aquelle
malfadado
leito palpitam as carnes sangrentas,
moribundas, de um corpo de mulher que
ainda ha pouco sentia e pensava...
Obseccado pela idéa do roubo, o assassino
arranca brutalmente as joias do cadaver,
e, á luz do combustor de crystal, reconhece
que são falsas!
Foge rua fóra, como um possesso, enfia
num becco, sae por outra rua, e desapparece
na escuridão da noite.
No dia seguinte seu nome lá estava estampado
em letras garrafaes no livro dos réos:
«Gustavo Adolpho... preso pelo duplo crime
de assassinato e roubo.»
Mais tarde, annos depois, o joven criminoso
tentou fugir de Fernando de Noronha
onde fôra recolhido. Prenderam-no em flagrante.
E ha poucos mezes, no anno passado,
a princeza Isabel, então regente do Brazil,
abriu-lhe as portas da prisão.
Gustavo Adolpho publicou, no degredo,
um livro de versos intitulado
Risos e
Lagrimas,
uma collecção de poesias sentimentaes
[24]
e amorosos que pouco valem pela fórma e
onde se acham crystalisadas as dôres do infeliz
poeta, cuja imaginação cantava entre lagrimas.
Penalisou-nos a sorte d'esse rapaz sympathico
e intelligente.
Havia, alem de Gustavo Adolpho, outro
preso não menos interessante e que nos excitou
a curiosidade. Indigitado autor de não sei
que roubo, fôra condemnado igualmente a
galés perpetuas.
Interrogado, disse-nos contar oitenta (!)
annos de idade e possuir familia numerosa:―mulher
e 30 filhos!
―Qual foi o seu crime? perguntámos.
O velhinho todo tremulo, a cabeça muito
branca; uma nevoa humida no olhar, sem
forças quasi para dar um passo, murmurou
tristemente:
―Nenhum, meus caros senhores... Supponho
que houve engano da justiça...
―E si lhe dessem liberdade agora?...
―De que me servia? Mal me tenho em pé
e já não sei de minha mulher e de meus filhos,
[25]
Estou muito velho, preciso morrer descansado
aqui mesmo na prisão.
O edificio da Penitenciaria tem, logo á
entrada, a seguinte inscripção em marmore:
No
dia 23 de abril de 1885 sendo
presidente da provincia o Illm. Sr.
Conselheiro Dr. José Bento da C.
Figueiredo foram removidos os presos
para este edificio organisado
sob a direcção do engenheiro José
Mamede Alves Pereira.
Contava, portanto, trinta e cinco annos.
Foi a mais interessante de todas as nossas
visitas em Pernambuco.
II
No dia 27 deixámos o Recife em
direcção
ás Antilhas.
Como até ahi, a viagem continuou a
vapor,―uma verdadeira viagem de recreio si
não fosse a exiguidade dos commodos a bordo
do cruzador.
O commandante levava ordem para chegar a
Nova Orleans em tempo de assistirmos a
abertura da exposição internacional americana,
onde o
Almirante Barroso devia
figurar
como legitimo e admiravel producto da industria
naval brazileira tão pouco conhecida no
extrangeiro.
Adoptavamos, sempre que o vento permittia,
a navegação mixta, e deste modo, á
vela
[28]
e a vapor, arrastados pelas correntes maritimas
que puxam para o norte, alcançámos, a 2 de
Março, a linha equatorial, onde apanhámos
alguns chuviscos debaixo d'uma athmosphera
ardentissima.
Reinava «calmaria pôdre». Ferraram-se as
velas á mingua da mais leve aragem, armaram-se
os toldos para que podessemos supportar
o calor na tólda, e os banhos salgados
de ducha foram recebidos com especialissimo
agrado. Suava-se a valer. Imagine-se:
embaixo, no porão, as fornalhas accesas,
e em cima o sol ardente, o medonho sol do equador,
cahindo como um caustico sobre o navio.
Á tardinha incendiavam-se os horisontes
de um colorido rubro, ensanguentado, de
magica, reflectindo-se no espelho do mar
tranquillo como num grande lago de crystal...
Demos graças a Deus quando nos vimos
fóra de tão desagradaveis regiões.
No dia 11 avistámos terra de Barbados,
uma das mais prosperas colonias inglezas das
Antilhas. Era o primeiro porto extrangeiro
do intinerario.
[29]
O Capitão do Porto foi o primeiro personagem
que pisou a bordo: um inglez de
aspecto duro como em geral o de todo inglez,
olhando atravéz de uns grandes oculos azues
e ostentando fleugmaticamente um par de
soiças ruivas. Trajava
dolman branco, muito
justo ao corpo, calças de panno preto e chapéo
de cortiça branco, de grandes abas, tombado
para a nuca.
Fez a visita sacramental e poz-se ao
fresco em menos de dois minutos, depois de
um fortissimo
shake-hand.
A ilha de Barbados vista de bordo é de
uma nudez quasi completa: nenhuma vegetação
cobre as vastas planicies que primeiro
ferem a retina do observador. Ao approximar-se-lhe,
porém, novas paisagens de effeitos
cambiantes vão-se desenrolando á maneira de
cosmorama. Moinhos rodam ao sopro do
vento que ordinariamente é fresco ahi, casas
de campo confortaveis, arvores, chaminés
fumegantes, tudo isso vai apparecendo á medida
que nos approximamos, até que, com
verdadeira surpresa, surge-nos toda a cidade
[30]
de Bridgetown e então basta um golpe de vista
largo para abrangel-a.
Á distancia Bridgetown semelha uma
pobre cidade deshabitada, sem indicio de
civilisação.
A surpreza que experimenta o viajante
é completa depois. Alguem que ahi
esteve annos antes admirou-se da enorme
quantidade de embarcações inglezas surtas no
porto. Entre estas contavam-se quatro encouraçados,
bonitos vasos que honram a Inglaterra
affirmando o grande poder maritimo desse paiz,
cuja esquadra ainda hoje não tem rival no
mundo.
Um dia e meio―eis todo o tempo de
nossa demora em Barbados, tempo sufficiente
para conhecermos a ilha a
vol
d'oiseau.
A população, na maior parte negra, é
composta de gente de baixa classe e geralmente
intratavel.
Abundam os
ciceroni, especie
curiosissima
de especuladores, que perseguem os
viajantes de uma maneira barbara. Querem,
á fina força, ensinar-lhes as ruas, os hoteis, e
não os largam emquanto não satisfazem a sua
[31]
ambição, cobrando, no fim de contas, certo
numero de
shillings.
Falam um
patois detestavel; ninguem
os
entende com facilidade. Imagine-se um pobre
diabo acompanhado d'uma multidão que grita
e fala idioma desconhecido a repetir-lhe alto
aos ouvidos:―
Came hear! came hear!
discutindo,
altercando-se de cacete em punho.
O misero julga-se por um momento transportado,
como por encanto, ás costas d'Africa,
fecha ouvidos á grita dos importunos
ciceroni,
brada mil vezes
no, no, no..., e
não tem remedio
senão deitar a correr como um possesso,
perseguido sempre pela turba multa de vadios,
até que, depois de uma lucta incrivel, esguedelhado,
offegante, pallido, embarafusta pela
porta d'um hotel escorrendo suor, esfalfado,
morto de cansaço!
E ainda por cima vociféra a legião faminta
dos negros!
Nao exagéro. Parece realmente um paiz
semi-barbaro aquelle, e ai! de nós si não
fossem os
policemen, a, activos e
energicos guardas
da vigilancia publica, que a um simples
[32]
franzir de sobr'olhos fazem desapparecer a
medonha horda de capadocios, ou que melhor
nome tenham esses turbulentos demonios.
É espantosa a ambição do povo por
dinheiro.
Ao tilintar do
money surgem de
repente
vinte, trinta cabeças negras, cada qual
mais negra, disputando a posse do precioso
metal.
Basta dizer que ainda não tinhamos fundeado
e já grande numero de pequenas
embarcações
á vela e a remos,―
fly
boats,―approximavam-se
do navio, cortando-lhe a prôa com
risco de serem espedaçadas. Ouvia-se, então,
de todos os lados vozes que gritavam:―
I am
pilot! I am pilot!
Embalde procuravamos persuadir áquelles
esfaimados de dinheiro que não precisavamos
de pratico, pois a bahia de Bridgetown é
bastante espaçosa e offerece entrada franca.
Davamos com o lenço, mandando-os embóra―que
não! mas os gritos repetiam-se:―
I
am pilot! I am pilot!
Todos queriam, a troco de dinheiro, conduzir
[33]o navio extrangeiro
ao ancoradouro e
para isso exigiam um preço fabuloso.
Formidaveis importunos os taes negros de
Barbados!
A edificação de Bridgetown, puramente
ingleza, é curiosa, pittoresca mesmo, si bem
que uniforme.
As casas, baixas quasi todas, geometricamente
dispostas, alpendradas na frente,
simples e elegantes na sua architectura, são
confortaveis e convidam ao
far-niente.
As ruas, porém, estreitas e mal calçadas,
são, por assim dizer, intransitaveis, em consequencia
do poeiral que sobe, como fumaça, ao
rosto dos transeuntes.
No que respeita a estabelecimentos importantes,
vimos a―
St. Leonard's School e uma
igreja-cemiterio.
A estatua de Nelson, o heroe de Trafalgar,
ergue-se, em bronze massiço, n'uma das melhores
praças do logar―
Nelson's
square, si
me não engano.
Os poucos hoteis que existem na ilha são
vastos e offerecem o necessario conforto ao
[34]
viajante: boa mesa, bons petiscos, magnifico
vinho, deliciosos
sorvetes―
ice-cream―e,
finalmente, boas camas e muito aceio.
O brazileiro que viaja, com raras excepções,
tem necessidade imprescindivel de duas
cousas que elle julga essenciaes ao seu bem
estar: café e cigarros.
Spleen e charutos―são
cousas inseparaveis
de um inglez da Inglaterra; café e cigarros―eis
o que um brazileiro não dispensa.
Infelizmente para nós, o café, tal qual se
prepara em Barbados, é um licor detestavel
composto de muito pó e pouca agua, que os
naturaes mixturam á guisa de chocolate, mas
de um sabor desagradavel, repugnante.
Duas linhas de bonds percorrem a capital
d'um extremo a outro.
A ilha é circumdada por uma via-ferrea.
De resto, é admiravel senão assombroso
o progresso d'essa colonia, relativamente
pequena e tão longe da metropole.
E, note-se, de vez em quando atravessam
aquellas regiões terriveis cyclones produzindo
estragos incalculaveis em toda a extensão da
[35]
ilha. Innumeras embarcações, algumas de
grande porte, têm sido arrojadas á costa por
esses formidaveis meteóros. O ultimo cahiu
em 1851 e figura nos annaes da navegação
como um dos grandes desastres maritimos
do Atlantico.
III
Na manhã do dia 13 suspendemos ancora
em direcção á ilha da Jamaica,
fundeando no
mesmo dia na bahia de Port-Royal.
Denso nevoeiro envolvia, como uma gaze
alvissima, as altas montanhas que orlam magestosamente
a antiga colonia hespanhola.
Ao approximarmo-nos da pequena e elegante
cidade de Port-Royal, pedimos pratico
o qual nos levou á Kingston.
O brazileiro que, depois de longa ausencia
do Brazil, chega á Jamaica sente logo um
prazer especial, um fremito de patriotismo, ao
contemplar as soberbas montanhas da ilha,
tanto ellas lembram a natureza do nosso paiz.
A bahia, salpicada de interessantes ilhotas de
[38]
verduras, verdadeiras ilhas fluctuantes, em
cujas aguas immoveis bandos de aves ribeirinhas
ostentam sua plumagem garrída e multicolor,
voando d'uma margem á outra n'uma
contradansa animada, offerece aspectos lindissimos.
Jamaica parece um pedaço do Brazil
transplantado para as Antilhas, tal a opulencia
da sua natureza.
É a maior e a mais florescente das colonias
inglezas da America depois de Barbados.
Mede approximadamente quarenta leguas de
comprimento.
Kingston não é uma cidade como Bridgetown,
onde a cada passo depara-se com uma
prova de adiantamento material. É, por assim
dizer, uma capital morta, quasi sem commercio,
mas, em compensação, muito mais
pittoresca que a capital de Barbados. Os
habitantes são morigerados, e uma paz religiosa
parece reinar no seio de cada familia.
Ha mais pobresa, é certo, mas incomparavelmente
o povo é mais educado, mais
pronunciado o instincto de civilisação.
Muitas estatuas. Vimos as de Lewis Quier
[39]
Bower Bonk, nascido em 1815, Edward Jordon,
um dos principaes fundadores da―
Jamaica
Mutual Life Assurance Society, Sir Charles
Theophilus Metcaf, governador em 1845―todas
ao redor de um parque. Isso prova
quanto respeito infunde ao inglez o nome de
um compatriota celebre.
Um brazileiro estabelecido em Kingston
disse-nos ser o
Almirante Barroso o
primeiro
navio brazileiro que ahi aportava desde 1871.
Nossa demora em Jamaica foi rapida como
em Barbados. Telegrammas officiaes do Rio
apressavam-nos cada vez mais. Já se havia
inaugurado a Exposição de Nova Orleans;
era-nos forçoso assistir ao menos o encerramento.
Estavamos convictos de que o cruzador
brazileiro ia figurar com brilho no importante
certamen americano. Tanto em Bridgetown
como em Kingston não lhe faltaram
elogios de pessoas competentes.
Todos anceavamos pela chegada ao paiz
maravilhoso dos
yankees, ao
berço da electricidade,
todos queriamos conhecer
de visu o
celebrado paiz das descobertas engenhosas.
[40]
Desde logo entrámos, de combinação, em
«serios» estudos do idioma inglez praticando
uns com os outros, compulsando manuaes de
conversação, decorando significados,
preparando-nos,
emfim, da melhor forma, para retribuir
gentilezas, captar amizades, responder a
todas as perguntas que nos fossem feitas á
queima roupa. Sim, porque tudo quanto
haviamos aprendido theorica e praticamente
na Escola, não era bastante. Faltava-nos a
facilidade, o traquejo da palavra extrangeira,
que haviamos de adquirir á força de vontade
e applicação assidua.
Alguns officiaes, entre os quaes o commandante,
riam-se do nosso apuro, e, de vez
em quando, atiravam-nos de surpreza uma pergunta
em inglez. Quanto disparate, quanta
tolice a principio! O certo é que depois, com
o tempo, já nos entendiamos soffrivelmente.
Noblesse oblige...
IV
A hospitaleira sociedade de Jamaica havia-nos
conquistado a sympathia. Todos sentimos
deixar tão cedo aquella encantadora ilha, cujos
habitantes nos tinham prodigalisado tão generoso
acolhimento. Lenços ascenavam para
bordo ao deixarmos o ancoradouro ás 5 horas
da tarde de 21, despedindo-nos talvez para
sempre d'essa boa gente.
Durante os dias 22 e 23, mar e vento
rebellaram-se contra o navio.
Navegavamos á bolina, sempre á vela e a
vapor, amurados por bombordo.
Grandes rajadas frias sopravam do norte,
cantando nos cabos da mastreação, sacudindo-os
com violencia.
[42]
O thermometro baixara sensivelmente, e
a columna barometrica punha-nos calefrios...
O mar quebrava-se de encontro ás bochechas
do cruzador desafiando-lhe a resistencia
colossal.
Sabiamos que a latitude em que navegavamos,
nas Antilhas, era muito frequentada
pelos cyclones, esses terriveis inimigos dos
navegantes, que arrastam em sua cauda milhares
de vidas. Receiavamos esses phenomenos
tanto mais porque os seus effeitos fazem-se
sentir a grandes distancias.
Os symptomas visiveis, si não eram evidentes,
approximavam-se das descripções de
navegantes experimentados. O céo estendia-se
limpo, como um largo pallio azul esbranquiçado;
apenas no horisonte fluctuavam pequenos
stratus em fórma de rabo
de gallo e
algumas estrias avermelhadas, escarlates, despertavam-nos
a attenção.
Ao meio-dia o sol tinha uma côr baça,
com um disco azulado ao redor.
E crescia o mar em vagalhões medonhos
e esfusiava o vento no cordame.
[43]
O navio caturrava e arfava morosamente;
ouvia-se o barulho do helice trabalhando fóra
d'agua.
Pela madrugada de 24 lobrigámos por
boréste o pharol da ilha de Cuba, de luz muito
branca, e no dia seguinte sulcavamos o golfo
do Mexico.
Poucos dias restavam para alcançarmos
Nova-Orleans.
E nada do supposto cyclone!
Por via de duvidas, como o tempo continuasse
borrascoso, ferrámos a maior parte do
panno, conservando apenas as gaveas risadas
nos
terceiros e a mezena de capa.
Capeámos tres dias consecutivos, sem que
apparecesse o medonho visitante.
No quinto dia o vento amainou rondando
para nordeste e o mar, por força das circumstancias,
tambem acalmou-se. Ferrámos o
resto do panno, navegando só a vapor.
A idéa da chegada preoccupava todos os
espiritos. Os Estados-Unidos eram o assumpto
de todas as conversações.
Cedo tratou-se da limpeza do navio.
[44]
Cada qual tratou de si, de sua roupa, de
seus objectos que o mar sacudira de um lado a
outro dos camarotes. Os alojamentos apresentavam
o curioso aspecto de um campo de batalha;
malas confundiam-se umas sobre outras
formando empilhamentos, a roupa branca
usada andava de mixtura com os fatos novos
de panno; livros, papeis―tudo quanto era de
uso quotidiano estava espalhado no convéz,
como si andasse por ali alguma creança traquinas.
Guerra ao môfo! Roupas ao sol! Ninguem
se fez esperar. Começaram as
arrumações,
uma faina açodada, durante a qual soaram boas
gargalhadas filhas de inalteravel bom humor.
Os guardas-marinha alojavam-se á pôpa
n'um acanhadissimo compartimento que mal
os comportava. Ahi tinham suas camas, suas
malas, seus livros.
Quantos prejuizos! Quantas decepções!
E todos acocorados, arrumando e desarrumando,
n'uma confusão burlesca, maldiziam
o mar e apostrophavam o vento. Neptuno e
Eolo nunca receberam tantas manifestações
[45]
desairosas. Pois não! Ninguem tem suas
cousas para vel-as de um dia para outro arruinadas,
inutilisadas pelos caprichos incoerciveis
do mar e do vento.
Finalmente, como nada ha melhor que um
dia depois de outro, veio o dia 29 de Março
em que dos váos do joanete de prôa o gageiro
annunciou―terra!
Continuava, entretanto, incessantemente,
a asáfama. A guarnição da bateria
occupava-se
da limpeza das peças, collocando-as em
posição, abrindo e fechando culatras, lixando-as,
lubrificando-as emquanto o fiel ia distribuindo
o cartuxame.
Havia uma alegria geral a bordo e sentia-se
um vago odor de tintas, como ao entrar-se
n'uma casa nova, pintada de fresco.
Já era tempo de repousarmos das fadigas
da viagem.
V
Ninguem póde imaginar o que é a chegada
de um navio de guerra a porto extrangeiro
depois de uma tempestade ou mesmo
depois d'uma ameaça de temporal. A faina
tor-na-se geral e o ruido inevitavel. É
de
ver-se a promptidão, a rapidez com que se
executam as ordens. Como que ha mais vontade
para o trabalho, desenvolve-se logo um
contagioso bem estar, ninguem foge ao serviço.
Tezar cabos de laborar, baldear o convez
a ficar alvo e polido, como uma sala de visitas,
limpar, areiar os metaes amarellos até ficarem
relusentes como ouro de lei, ferrar o panno a
capricho, cuidadosamente, de modo a confundil-o
com as vergas e os mastros, preparar os
[48]
escaleres―tudo isso é cousa d'um abrir e
fechar d'olhos.
A guarnição do
Almirante
Barroso, disciplinada
e obediente como todas as que serviam
sob as ordens do commandante Saldanha, primava
pelo aceio, pela ordem, pela destreza e
pela actividade. Não se lhe póde fazer maior
elogio. Cada marinheiro era como uma machina
prompta sempre ao menor impulso.
A chibata era n'esse tempo, como ainda
hoje o terror das guarnições da armada.
Sempre manifestei-me contra esse barbaro
castigo que avilta e corrompe em vez de corrigir.
Um castigo de chibata é a cousa mais
revoltante que já tenho visto, mormente
quando é mandado applicar por authoridade
deshumana, sem noções do legitimo direito
que a cada homem assiste, quem quer que elle
seja soldado ou pariá.
O meu primeiro passo ao deixar a Escola e
envergar a farda de guarda-marinha foi publicar
um protesto contra essa pena infamante,
e fil-o desassombradamente, convicto mesmo
de que sobre mim ia cahir a odiosidade
[49]
de meus superiores em geral apologistas da
chibata.
A primeira vez que minha posição official
obrigou-me a assistir um desses castigos, tive
impetos de bradar com toda a força dos pulmões
contra semelhante attentado á natureza
humana.
Quem já assistiu uma d'essas pavorosas
scenas do eito, magistralmente descriptas por
Julio Ribeiro na sua obra
A Carne,
póde fazer
idéa do que seja o castigo da chibata.
Despir-se a meio corpo um pobre homem,
um servidor da patria, pés e mãos algemados,
muita vez depois de trez dias de
solitaria a
pão e agua, e descarregar-se-lhe sobre a
espinha, sobre as espaduas, sobre o peito,
sobre o ventre, na cara mesmo, em todo o
corpo cincoenta, cem, duzentas chibatadas, em
presença de todos os seus companheiros, me
parece indigno d'uma geração que se
préza,
de uma sociedade de homens civilisados, de
cidadãos, de cavalheiros que ostentam triumphalmente
galões dourados na farda―na farda,
[50]
que significa a nobreza, a coragem, o patriotismo
e a honra d'uma nação.
Revoltei-me contra semelhante barbaridade
inquisitorial, como quem tem consciencia
de que está praticando uma acção justa
e honrosa.
Doía-me por um lado pertencer a uma
classe nobre por tantos titulos, é certo, mas em
cujo seio era permittido a chibata e, o que é
mais, o seu abuso.
A esse tempo a
Gazeta de Noticias do
Rio de Janeiro publicava semanalmente um
boletim litterario no louvavel intuito de estimular
os incipientes das letras. Offerecia-se-me
opportunidade para um conto maritimo,
cujo assumpto fosse a chibata.
Escusado é dizer que o meu artigo provocou
o despeito dos culpados indirectamente
feridos no seu amor proprio. Embora! Fiquei
satisfeito, como si tivesse sacudido para longe
um fardo pesadissimo; e, é preciso dizer, não
hesitei em declarar-me autor do conto que
vinha firmado por meu nome, então desconhecido
na armada.
Alguns de meus companheiros taxaram-me
[51]de imprudente e
«indiscreto». Outros levaram
seus conselhos até á minha
inexperiencia
de adolescente indisciplinado.
Todo o mundo julgou-se com direito a
censurar meu procedimento: «que roupa suja
deixa-se ficar em casa; que a chibata era um
castigo imprescindivel», e outros arrasoados
soffrivelmente banaes.
Meu consolo é que d'entre aquelles que
preconisavam os effeitos prodigiosos da chibata
n'outros tempos, muitos concorreram em
demasia para a sua extincção.
Dei parabens á patria e á humanidade.
VI
Como militar e disciplinador o commandante
Saldanha da Gama distinguia-se por sua
inflexibilidade porventura exagerada, especialmente
para com as guarnições sob seu zeloso
commando. Temperamento atrabiliario, sanguineo-nervoso,
sujeito a transições bruscas,
inesperadas, impetuosas e violentas, o illustre
marinheiro, espirito eminentemente illustrado,
não sabia, entretanto, guardar a necessaria
calma quando devia applicar as penas do
codigo. Essas penas, como se sabe, acham-se
perfeitamente explicitas, precisamente formuladas
de modo a não deixar duvida nos espiritos
rectos e amigos da lei. Entre os artigos
que constituem o codigo penal militar existe
[54]
um que limita o numero de chibatadas, o qual
não deve, em caso algum, exceder de vinte e
cinco por dia.
Pois bem, o commandante Saldanha pouquissimas
vezes castigava conforme a lei.
Collocava acima d'ella seus caprichos inexplicaveis,
sua natureza rancorosa, sua vontade
suprema. Nao trepidava, e isto é sabido, em
mandar açoitar com duzentas chibatadas uma
praça qualquer, tal fosse o delicto commettido.
A um simples olhar seu as guarnições tremiam
como caniços. A qualidade caracteristica
d'esse illustre official era ser arbitrario e
prepotente. Por isso a guarnição do
Almirante
Barroso corria a seus postos, em occasião
de manobra, com a velocidade d'uma
setta.
Estavamos quasi á entrada do Mississipe,
a grande arteria fluvial da America do Norte,
que nós imaginavamos um colosso talvez superior
em volume d'agua ao Amazonas,―o Mississipe,
decantado pelo autor dos
Natchez, e
em cujas margens fica a cidade de Nova
Orleans nosso ponto de chegada.
[55]
Ninguem pensava mais no Rio de Janeiro
para só se lembrar de Nova Orleans, a
Cidade
Crescente, como a denominam os americanos.
Trez horas da tarde, mais ou menos. Embarcações
á vela e vapores bordejavam fóra
da barra á espera de pratico, sem o qual era
impossivel a entrada. Mar calmo, com uma
côr esbranquiçada, lembrando na sua
quietação
dormente um vasto lago estagnado. Em
frente, muito longe ainda, mal distinguiamos
com o binoculo o pharol, microscopica torre
branca, invisivel quasi.
Envolvidos em grossas capas de lã, abotoados
até o pescoço ao abrigo do frio que se
tornava insupportavel para nós da zona torrida,
de pé no tombadilho, machina a um quarto de
força, bandeira nacional desfraldada na carangueja
do mastro de ré, esperavamos tambem o
pilot que nos devia conduzir
á Nova Orleans,
110 milhas da foz do Mississipe.
O Mississipe! Dentro em pouco sulcavamos
a grande corrente.
Não tardou muito o pratico, por cujo
intermedio tivemos noticia da estrondosa
manifestação
[56]com que os
habitantes da cidade
americana aguardavam a chegada do cruzador
brazileiro.
Bella surpreza essa! Cresceu o enthusiasmo
entre os noveis officiaes.
Entrámos. Durante o nosso trajecto pelo
Mississipe a anciedade a bordo tocou o seu
auge. Queriamos, todos a um tempo, avistar
as embarcações que, dizia-se, vinham nos
receber.
O autor d'estas simples notas de viagem,
que admira os Estados-Unidos como uma
segunda patria, porque ali moram juntas todas
as liberdades e florescem prodigiosamente
todas as nobres idéas civilisadas, de braços
cruzados estendia o olhar cheio de admiração,
cheio de deslumbramento por cima das extensas
planicies das margens do grande rio.
O pôr do sol entre a neblina que cobria
os horisontes fazia lembrar as paginas de
Chateaubriand na sua
Voyage en
Amérique,
paginas esculpturaes e cheias da commovida
nostalgia dos que se vão da patria...
Quanta verdade nas sumptuosas descripções
[57]do poeta! Quanta
poesia n'aquellas
paragens desertas da foz do Mississipe,―Sahara
de neve estendendo-se a perder de vista nos
horisontes sem fim! Que de maravilhas occultavam-se
por traz d'aquellas planicies, lá onde
o olhar não attingia!
Eram Ave-Marias. Lembrei-me do Brazil,
dos sertões de minha terra natal, da torresinha
branca do Senhor do Bomfim badalando o
terço
das almas, justamente aquella hora, quando as
boiadas recolhiam mugindo, pesadas e melancolicas...
Ave-Marias!... Mesmo quando não se é
crente, áquella hora da tarde o
coração fica
cheio de não sei que terna e piedosa
uncção
mystica...
Fundeámos no ponto em que o rio se
divide em dois braços ou pequenos confluentes,
e ahi passámos a noite inteira, essa longa
e tristissima noite de inverno.
Frio de rachar. As aguas do rio, pardas
e barrentas, estavam quasi geladas.
As margens do Mississipe, em varios pontos,
são, no inverno, verdadeiras planicies, onde
[58]
apenas medra a herva rasteira. Á distancia,
pobre alma perdida no descampado, ergue-se
ás vezes uma arvore muito esguia, como um
phantasma de braços abertos para o céo. De
quando em quando atravessa a solidão uma
ave desconhecida batendo as azas, como um
agouro.
N'outros logares, porém, vêm-se rebanhos
pastando silenciosamente, plantações verdejantes,
casas de campo, postes de correio, em
cujas portas destacam-se em caracteres maiusculos
as palavras―
Post office.
O povo parece viver satisfeito no meio
de suas plantações e de seu gado, entregue
á
cultura e á creação.
Nuvens de mosquitos atordoaram-nos toda
a noite. «―Caramba! exclamava o barbeiro de
bordo, um estimavel hespanhol que traziamos
do Rio de Janeiro. Caramba! Mosquitos por
mosquitos me gustam mas los del Brasil!»
E tinha razão o nosso companheiro. Os mosquitos
do Mississipe são muito capazes de dar
cabo d'um pobre homem. E que medonha
orchestração nos ouvidos da gente?
[59]
Felizmente na manhã do dia seguinte
levantámos ferro.
O navio estava completamente prompto a
fazer sua entrada em Nova Orleans. Durante
quasi toda a noite a guarnição occupara-se em
colher cabos, esfregar a amurada e baldear o
costado.
Como passatempo liamos os jornaes que
o pratico trouxera, os quaes noticiavam a
recepção
popular e official que se nos preparava.
Dois hiates a vapor―o
Cora e o
Pansy―propriedade
de Mr. Morris, largariam de Nova
Orleans a nosso encontro, embandeirados,
com bandas de musica, commissões de senhoras,
representantes do commercio e d'outras
classes sociaes.
Ou fosse a natural affinidade que existe
entre as duas nações americanas, ou fosse o
facto de ir a bordo do cruzador brazileiro um
representante da familia imperial do Brazil, o
certo é que durante nossa travessia da foz do
Mississipe á cidade fomos con
Ou fosse a natural affinidade que existe
entre as duas nações americanas, ou fosse o
facto de ir a bordo do cruzador brazileiro um
representante da familia imperial do Brazil, o
certo é que durante nossa travessia da foz do
Mississipe á cidade fomos constantemente saudados
de ambas as margens do rio a tiros de
[60]
espingarda e a lenços que nos acenavam de
longe.
E o
Almirante seguia devagar, alvo
de
mil olhares curiosos.
Ao meio-dia ouvimos as notas de uma
musica alegre que se approximava, e em breve
surgiram n'uma curva do rio os dois magnificos
hiates―o
Cora e o
Pancy―apinhados
de gente, enfeitados de galhardetes de côres
variadas, em cujos mastros tremulavam as duas
bandeiras amigas.
De ambos os lados, no cruzador e nos
hiates, hurrahs confundiam-se no ar.
Em viva effusão de inexprimivel jubilo
patriotico estreitavam-se as duas grandes potencias
da America; a mesma brisa balouçava
simultaneamente os dois gloriosos pavilhões.
A gente do
Barroso subiu
ás vergas accelerada,
e, acenando com os lenços e os bonés,
saudava com vivas estrepitosos e delirantes
acclamações aos Estados-Unidos, ao mesmo
tempo que das duas embarcações partiam
ruidosas manifestações ao Brazil.
[61]
Fardada em segundo uniforme, espada
e dragonas, a officialidade do cruzador brazileiro,
em pé no tombadilho, vivamente commovida,
descobria-se a todo instante risonha e
feliz.
Sentiamos a falta de uma banda de musica
bem organisada, que n'aquelle momento, verdadeiramente
solemne, entoasse o hymno da
republica a bordo.
Passado o primeiro momento de delirio,
approximaram-se os dois hiates que nos acompanhavam
e o cruzador diminuiu a marcha.
Ficámos borda á borda. N'um instante toda
aquella gente que vinha nos vaporesinhos,
passou para o
Barroso.
Houve um silencio respeitoso de parte a
parte e começaram os abraços.
O consul geral brazileiro, Sr. Dr. Salvador
de Mendonça, tão conhecido entre nós
por seu
talento e por sua illustração, como homem de
letras e diplomata, juntamente com Mr. Eustis,
consul em Nova-Orleans, foram recebidos no
portaló pelo commandante e officiaes com
todas as honras que lhes eram devidas. Seguiram-se
[62]os representantes
da imprensa, do
commercio, etc.
Conduzidos á camara, desde logo estabeleceu-se
entre brazileiros e americanos uma
camaradagem franca, uma corrente communicativa
de affabilidades, como si já fossemos
conhecidos velhos. As taças de
champagne
chocavam-se, vivas succediam-se, levantavam-se
toasts ás duas
nações, trocavam-se os
mais espontaneos comprimentos.
A viagem continuou ao som da musica do
Cora e do
Pansy.
Ás 4 horas da tarde largámos ferro
defronte da antiga capital da Luiziania.
VII
Nova-Orleans é, talvez, a cidade mais importante
do sul dos Estados-Unidos.
Nosso primeiro cuidado, como era natural
foi desembarcar, «ir á terra», ceiar bem
e
dormir tranquillamente um somno bom e reparador.
Nao nos faltariam esplendidos hoteis
e magnificos
rooms onde podessemos,
á vontade,
descansar dos trabalhos da viagem.
Nossa demora devia prolongar-se ahi mais
do que em qualquer outro porto, por causa
da Exposição e a instancias dos habitantes
da cidade, que nos preparavam deliciosas
surprezas.
Tinhamos tempo bastante para ver Nova-Orleans,
para observar os costumes americanos
[64]
e fazer um juizo mais ou menos approximado
d'aquelle bello povo.
O porto estava atulhado de barcas de
commercio―vastas embarcações de dois e trez
pavimentos, duas e trez chaminés negras a
deitar fumaça n'uma actividade constante,
rodas na pôpa, muito mais amplas que as
nossas barcas Ferry do Rio de Janeiro. Atopetadas
de saccas de algodão e outros generos
do paiz, esperavam o momento preciso e regulamentar
de se fazerem ao largo.
Emquanto esperavamos, vivamente anciosos,
o escaler que nos devia conduzir ao caes,
assestavamos o oculo para a cidade quasi
silenciosa áquella hora, e cujas ruas não
tardariamos
a conhecer. Accendiam-se os primeiros
bicos de gaz. Ao longe, n'alguma egreja
remota, badalava um sino triste. Já não
se ouvia quasi o brouhaha quotidiano. Numerosas
embarcações cruzavam-se no rio. Ouviamos
guinchos de locomotivas e o surdo ruido
de carros que ainda labutavam.
Alguns officiaes deixaram-se ficar aguardando
o dia immediato para mais commodamente satisfazerem sua curiosidade de
viajantes em terra extrangeira.
entrada
de nova-orléans
[65]
Era fim de inverno. Ameaçava chover.
O frio continuava bastante forte ainda e os
camarotes do
Barroso offereciam,
nessas condições,
agasalho confortavel aos mais friorentos.
Na manhã seguinte, grupos de officiaes
brazileiros, uns fardados, outros á paisana,
percorriam Nova-Orleans.
O
St. Charles Hotel, um dos melhores
estabelecimentos da cidade, e o
Royal
Hotel―primeiro
em luxo e ornamentação―eram procurados
avidamente.
Os jornaes davam noticias circumstanciadas
de nossa chegada e annunciavam festas
em homenagem ao Brazil.
Uma vez installados nos hoteis, cada um
de nós em seu vasto aposento, onde nada faltava,
tão differente dos estreitos camarotes de
bordo, dividimo-nos em grupos.
Quanto a mim, o meu primeiro cuidado
foi munir-me de um guia da cidade, especie
de
pocket-book muito commodo,
registrando
[66]
indicações uteis de estabelecimentos e logares
principaes.
Meu quarto ficava no segundo andar do
St. Charles Hotel com frente para a
rua do
mesmo nome―uma saleta mobiliada com
a maxima sobriedade, sem luxuosas decorações,
contendo apenas os moveis indispensaveis
a um rapaz solteiro, e o fogão a um
canto.
Depois de magnifico banho morno em
bacia de marmore (perdôem-se-me estas innocentes
confidencias, aliás de bom gosto)
seguido de um valente almoço de ostras crúas,
as melhores que eu tenho provado, regadas á
Sauterne, mastigando (é o termo, porque não
sou lá muito admirador de charutos) mastigando
um charuto, que não sei bem si era de
Havana, sahi a fazer meu primeiro passeio,
minha
promenade matinal,
começando pela
Canal Street, a rua mais importante de Nova
Orleans, que a divide em dois grandes bairros―o
francez e o hespanhol.
No cruzamento das ruas de St.
No cruzamento das ruas de St. Charles e
Canal erguia-se a estatua de Clay. É esse o
[67]
ponto principal da cidade e o de maior movimento
nos dias uteis.
Parei defronte do monumento e consultei
meu alcorão, quero dizer meu guia manual.
«
Estatua de
Clay―Inaugurada solemnemente
no dia 12 de Abril de 1860. Joêl T.
Harl, de Kentucky, o artista que deu forma e
proporções á estatua, assistiu ao
acto. O
orador official foi Wen H. Hemt.».
Maldito laconismo! Pouco adiantei com
as explicações do livrinho.
A estatua é de bronze, sobre pedestal de
marmore, e mede, approximadamente, quinze
pés inglezes de altura.
―Continuam as estatuas! exclamei recordando
as que vira em Barbados e Jamaica.
Felizmente até agora não vira a de nenhum
monarcha. Veio-me então á memoria aquella
colossal massa de bronze que se ergue no largo
do Rocio, no Rio de Janeiro, em fórma de um
monarcha escanchado n'um bello cavallo.
Tive pena de não ser aquelle bronze
aproveitado para outra cousa mais digna e
util.
[68] ―Que diabo!
Aquillo é uma pagina de
historia patria, reflecti.―E continuei o meu
tour.
A Canal Street é o centro commercial de
Nova-Orleans, é a rua do Ouvidor d'aquella
cidade, sem os grandes inconvenientes do nosso
querido becco.
Larga, bastante espaçosa e comprida,
offerece transitos especiaes para a população,
para trens, bondes e carruagens.
As ruas, na maior parte são mal calçadas,
principalmente para o interior da cidade.
É, sem duvida, admiravel semelhante incuria
em se tratando de americanos do norte,
entretanto, é uma verdade que não deve ser
esquecida,
para consolo de nossas municipalidades.
Na Canal se acham os melhores e mais
solidos edificios, as mais fortes casas commerciaes,
os mais importantes armazens da cidade,
cafés, restaurantes, clubs, etc.
Convenci-me desde logo que os principaes
productos industriaes de exportação
eram―assucar e algodão, como bem presumira
[69]ao desembarcar, no
caes, onde era enorme
a accumulação de fardos desses dois generos.
De vitrine em vitrine, observando sempre,
escrupulosamente, curiosamente, á cata de novidades
extrangeiras, posso affirmar que nada
vi, surprehendente... Ah! sim, vi umas graciosas
caixeiras accudirem pressurosas e desenvoltas,
com o desembaraço proprio de sua raça,
aos compradores, cousa aliás muito simples,
muitissimo natural, mas não no Brazil, onde
as senhoras estão eternamente prohibidas de
competir com o outro sexo na vida publica.
Parece-me que só n'este paiz ainda não se
observa nem se permitte esse costume tão natural,
tão proprio, tão efficaz mesmo, das senhoras
pobres empregarem-se no commercio
a retalho. Na Inglaterra, em Franca, na Allemanha,
na Italia e nos Estados-Unidos é habito
velho, ao que me consta, as senhoras servirem
nos balcões, e é de notar que cumprem seus
deveres com assombrosa pericia. Ás nove
horas da manhã, que digo eu! ás seis horas,
depois de ligeira refeição, encaminham-se para
o trabalho quotidiano, felizes, satisfeitas, envolvidas
[70]em grossas capas de
lã no inverno, a
bolsa de um lado, sem siquer fazerem-se acompanhar.
Vão direitinhas de casa para a loja ou
escriptorio, sem que ninguem lhes dirija uma
pilheria, sem que ninguem as desrespeite, e, á
noite, recolhem-se da mesma fórma, sempre
alegres, transpirando saúde, a face rubra.
Muitas vezes sahem das lojas, mudam a
toilette, fazem seu penteado,
perfeitamente
dispostas, e d'ahi a pouco estão nos bailes, nos
concertos, nos theatros.
Rara a casa de modas, o armarinho, a livraria
onde se não encontra uma senhora
exercendo as funcções de simples caxeira,
ou como guarda-livros, silenciosa na sua
carteira, escripturando cuidadosamente o
Caixa.
Em alguns estabelecimentos publicos, no
Correio, por exemplo, grande parte do serviço
é feito por senhoras. Esse edificio, digamol-o
de passagem, na rua Canal, é de apparencia
extraordinariamente simples e desgraciosa. O
serviço, porém, como em toda
estação americana
é correcto e sem demora.
[71]
Individuos de muitas nacionalidades acotovellam-se
na grande rua.
Em Nova Orleans, como em quasi toda a
a Luiziania, fala-se mais o francez que outro
idioma qualquer, não sendo raro ouvirem-se
negociantes, mesmo senhoras de elevada hierarchia
falar, embora mediocremente, o hespanhol.
Havia chegado o momento fatal, inevitavel,
de nos exhibirmos tambem em lingua alheia.
Pouco a pouco, nos iamos familiarisando
com a população e com o ídioma d'esse
adoravel
canto da terra que o Mississipe banha.
O dia seguinte ao de nossa chegada á
Nova Orleans (31 de Março) estava designado
para o encerramento da Exposição das Trez
Americas. Avisados d'esta solemnidade, deviamos
comparecer a ella em grande uniforme,
encorporados.
Foi um dia essencialmente brazileiro esse.
Nos convites para a festividade lia-se esta
impagavel gentilesa:
Brasilian day.
Todas as attenções convergiam para o
Almirante Barroso (brazilian man of
war).
br />
[72]
O palacio da Exposição estava situado a
alguns kilometros fóra da cidade, n'um de seus
pontos mais pittorescos, o Upper City Park,
á margem do Mississipe―largo edificio vistosamente
adornado e do alto do qual se avistava
toda a cidade e immediações.
Na manhã d'esse dia, por signal chuvoso
e coberto de nevoeiro, embarcámos em trem
especial, que nos fôra destinado pelo presidente
da Exposição, Mr. Ed. Richardson, um
yankee muito amavel, todo cortesia,
sempre
com um bello e espontaneo sorriso a captivar a
gente, correcto sempre, irreprehensivelmente
correcto.
Embarcámos na Canal street, defronte do
Pickwick Club, em companhia de
muitos officiaes
da Guarda Nacional, de Mr. Richardson
e de officiaes da corveta franceza
l'Étoile, que
se achava no porto de Nova Orleans, dos
consules e outras summidades do paiz.
O trem abalou como um raio, todo enfeitado
de bandeirolas americanas, brazileiras e
d'outras nações, ao som de musicas e
acclamações
delirantes, rasgando, na sua marcha
[73]
vertiginosa, o nevoeiro que cahia sem cessar
penetrando os wagons escancarados ao ar frio
da manhã, soltando guinchos medonhos...
Durante o trajecto não me cansei de
observar os sitios que o trem atravessava.
De um lado e d'outro da linha estendiam-se
vastas plantações de algodoeiros desfolhados
pelo rigor do inverno, amontoados
de neve, immoveis phantasmas brancos no
silencio infinito dos descampados; casas de
campo deliciosas para se passar o verão, trancadas
á neve, muito brancas e desoladas, riam,
como saudando a nossa passagem, e desappareciam
rapidamente no horisonte esfumado.
É de vêr a simplicidade reunida á
graça
que apresentam essas habitações: vêr
uma é
vêr cem, tal a uniformidade de sua architectura.
Em geral são de madeira, pintadas de
branco e cinzento, com seu terraço para as
calidas noites de verão, jardim e horta arranjados
com admiravel cuidado e bom gosto.
Absorvido completamente pelo aspecto
variado da paisagem, sem prestar attenção ao
circulo ruidoso dos collegas, eu (lembro-me
[74]
bem) formava planos de vida socegada, n'algum
eremiterio entre a eterna frescura das plantas
e o amor eterno d'uma creatura querida.
Invejava os simples, os sertanejos, os homens
dos campo―esses para quem a vida
corre sempre calma, porque seu coração
não
conhece outro amor senão o da esposa e o dos
filhos, esses de quem Boileau dizia
Heureux est le mortel qui du
mond ignoré
Vit content de soi même en un coin
retiré...
E eu me transportava outra vez ao Brazil,
outra vez eu tinha a nostalgia da patria, a
saudade vaga e inexplicavel de minha terra
natal.
Parecerá uma phantasia de poeta adolescente
isto que acabo de dizer, mas é a verdade,
a expressão sincera do que eu sentia ao atravessar
a região que ia ter lá, ao palacio da
Exposição.
A tristeza da neve communicava-se ao meu
espirito imprimindo n'elle não sei que despretenciosas
ambições de silencio e recolhimento.
[75]
Alguem já procurou explicar a influencia que
exerce o estado hygrometrico da atmosphera
no estado psychologico do individuo.
Eu de mim só sei que o patriotismo, longe
da patria, dupplica.
E fechemos esta especie de parenthesis.
Uma commissão de cavalheiros, competentemente
encasacados, veio receber-nos ao
desembarque.
Entrámos. Nossa entrada foi verdadeiramente
triumphal.
Dentro e fóra do edificio era grande a
agitação.
Ondas de povo entravam e sahiam
percorrendo o pittoresco
Upper City
Park.
Felizmente «levantou o tempo», como se
costuma dizer.
Ao assomar á porta do grande salão de
honra o primeiro official brazileiro, o commandante
do
Barroso, ao lado do consul e do
presidente da Exposição, a orchestra de
professores,
brilhantemente organisada, rompeu lá
dentro o hymno nacional americano (não conheciam
o nosso hymno aliás tão vulgarisado),
os espectadores que enchiam o vasto recinto
[76]
ergueram-se, e uma salva estrepitosa de palmas
acolheu o resto da officialidade.
Houve um momento de verdadeiro delirio,
em que todos batiam palmas sem interrupção
levantando vivas ao Brazil.
Serenado o enthusiasmo, um enthusiasmo
indescriptivel, apopletico, tomou a palavra
Mr. Richardson, que proferio o discurso de
encerramento, saudando a armada brazileira.
Seguiu-se na tribuna o orador official,
que, n'um improviso eloquentissimo, patenteou
a necessidade de uma união entre todas as
nações americanas, desenvolvendo largamente
as vantagens que d'ahi proveriam a todas elas.
Falou tambem o governador da Luiziania,
e, finalmente, os Srs. Salvador de Mendonça
e Saldanha da Gama, cujas palavras foram
cobertas dos mais significativos applausos.
Terminada a ceremonia oratoria, foi-nos
franqueado o edificio da Exposição, que
percorremos
examinando com interesse os differentes
pavilhões industriaes.
O Brazil―é triste dizel-o―fizera-se representar
de modo bem insignificante.
[77]
Brilhariamos pela ausencia, si o Governo
não tivesse a lembrança de mandar o
Almirante
Barroso.
Amostras de madeiras, café em grão,
fumo, artigos de borracha, constituiam os principaes
productos brazileiros expostos á curiosidade
dos visitantes de quasi todas as
partes do mundo civilisado. O pavilhão do
Brazil deixava-se ficar em plano inferior aos
das outras nações, como si fossemos um
pobre paiz, cujos productos não valessem a
pena de ser expostos n'um certamen internacional!
D'ahi, talvez, o assombro dos americanos
ao verem o
Almirante Barroso, esse
esplendido
vaso de guerra de envergadura possante,
capaz de resistir aos mais fortes temporaes e
que elles, os extrangeiros, duvidavam fosse
obra nossa.
―Como? Pois no Brazil tambem se fabricam
navios de guerra? Está muito adiantado
o Brazil!
E repetiam com um ar de duvida e de
ironia medindo d'alto a baixo e de pôpa á
prôa
[78]
o magestoso cruzador, que balouçava de leve
sobre o Mississipe:
―Está muito adiantado o Brazil!
Entretanto o Mexico, a America Central
e as republicas sul-americanas, sem os recursos
invejaveis da grande nação, sobresahiam
admiravelmente. O pavilhão do Mexico,
sobretudo, desafiava a maior parte dos outros
não só em abundancia de artigos, mas,
principalmente,
em belleza e bom gosto, em elegancia
e riqueza.
Escusado, parece, falar do importante logar
que coube aos Estados-Unidos. Que profusão
de machinas e instrumentos industriaes de
invenção
puramente americana! Ali mesmo, á
vista do observador, fabricavam-se os mais curiosos
objectos de fantasia e de uso domestico;
o linho, o algodão, a sêda―eram tecidos
rapidamente
aos olhos de todos.
Imagine-se agora o ruido, a algazarra, a
movimentação que devia reinar ali dentro
d'aquelle immenso edificio, certamente muito
longe de ser comparado aos palacios de
exposições universaes, mas ainda assim um
[79]
dos maiores que se tem levantado n'esse
genero.
Para dar uma idéa de suas
dimensões―não
o chamaremos vaticano da industria para
não exagerar―basta dizer que o salão de
musica―
music hall―accommodava
11.000
pessoas, inclusive uma vasta área para 600
figuras.
Impossivel descrever as amabilidades, as
gentilezas que nos foram prodigalisadas largamente
pelas adoraveis americanas de Nova
Orleans nessa festa democratica de
confraternisação
internacional; recordar as phrases
deliciosas, os galanteios irresistiveis...
O que posso affirmar é que o
brazilian
day
ha de perdurar por muito tempo no coração
d'aquelles que tiveram a felicidade de assistir
essa bellissima festa.
Dias depois voltei ao palacio da
Exposição,
sosinho, como simples curioso que não tivera
tempo bastante para examinar tudo no pequeno
espaço de doze horas.
Nada mais restava senão o esqueleto nú do
edificio em via de demolição. Todos os objectos
[80]
tinham sido retirados com assombrosa rapidez.
Operarios em mangas de camisa martellavam
grandes caixões, assobiando monotonamente,
emquanto outros carregavam pesados volumes
contendo os ultimos especimens da industria
americana.
Voltei immediatamente com um ar compungido
de quem acaba de acompanhar um
enterro, lamentando o tempo perdido e exclamando
de mim para mim:
―Ah! americanos d'uma figa, sois um
povo excepcional!
Agora uma pergunta ingenua: Porque é
que o Brazil, com os numerosos recursos que
tem á mão, timbra em occupar logar segundario
em quasi todas as Exposições a que concorre?
Indifferença, talvez, simples indifferença
de nossos governos.
Na celebre Exposição de Philadelphia
não
sabiamos á ultima hora como e onde accomodar
os productos deste paiz, em consequencia
de não ter o governo mandado construir um
pavilhão especial.
Contentamo-nos em enviar objectos bastante
[81]conhecidos,
não fazemos
selecção na
escolha d'elles, não nos importa o modo como
devam ser acondicionados.
Na Exposição de Vienna ainda o Brazil
teve de occupar logar pouco lisongeiro, e si
alguns de seus productos principaes tiveram
a felicidade de ser premiados foi isso devido,
não ao governo, mas tão somente a
esforços
de muitos negociantes do Rio de Janeiro e do
Pará.
Annuncia-se para o anno vindouro uma
Universal Great Exhibition, nos
Estados-Unidos,
cujo successo irá rivalisar, talvez, com o
da Exposição Universal realisada ha mezes em
Pariz e notavel pela colossal e tão celebre
torre Eiffel. Nenhuma razão assiste para que
a grande nação da America do Sul, o Brazil,
não se faça representar com todo o brilho de
sua incontestavel riqueza.
Agora que somos republica, torna-se dupplamente
preciso que patenteemos ao mundo
inteiro a infinita variedade de nossas produções
agricolas, a opulencia invejavel da
flora brazileira e da industria já bastante adiantada
[82]d'este bellissimo
paiz, cuja natureza
extasiou Humboldt, Agassiz e tantos outros
sabios da Europa.
Si cada Estado souber cumprir seu dever
não poupando esforços para esse nobilissimo
fim, certo d'esta vez não teremos que corar
perante as outras nações como nos tempos do
anachronico imperio do Sr. D. Pedro II.
VIII
A grande Exposição Industrial de Nova
Orleans prolongou-se até ao
Almirante
Barroso.
O bello cruzador brazileiro começou
desde logo a ser o alvo dos curiosos de
todas as nações ali representadas.
Comprehende-se o vivo interesse do povo
em assumptos d'esta ordem.
Não havia na cidade quem não soubesse
que estava no porto um navio de guerra do
Brazil, e este facto por si só era bastante para
que toda a gente ardesse em desejo de vel-o de
perto, de o percorrer d'um extremo a outro.
―Quantos canhões traz? perguntava-se.
A machina quantas milhas vence por hora?
Quantas rotações por minuto?
[84]
E quando affirmavamos que a machina do
Barroso era de ferro Ipanema e
d'outros
metaes brazileiros, que todo o navio, da pôpa
á prôa, era construcção
inteiramente nacional,
subia de ponto a surpreza dos nossos visinhos.
O quê! No Brazil já se constroem navios
de guerra?―
It is impossible!... E
toda a população,
tomada de um quasi espanto, duvidando,
talvez, da nossa habilidade, affluía ao caes.
Todo o cruzador, desde a camara do commandante
até ao alojamento dos marinheiros,
desde o tombadilho até ao porão, foi exposto
á
curiosidade publica.
O sexo gentil, com especialidade, repetia
suas visitas.
Desde ás oito horas da manhã, ao
içar-se
a bandeira, começavam a atracar lanchas a
vapor e escaleres cheios de visitantes de ambos
os sexos.
Grandes lanchas iam e vinham do caes
para o cruzador e do cruzador
para o caes,
continuamente, incessantemente, apinhadas de
passageiros, que pagavam 5 centimos de ida e
volta. Cada uma trazia á prôa, em letras
[85]
esparramadas e vivas, a senha:―
Brazilian
man of war.
Á tarde, depois d'uma faina acabrunhadora
de receber familias e percorrer duas, tres
e mais vezes o navio, dando explicações,
descrevendo
apparelhos e machinismos com uma
paciencia de pedagogos, iamos á terra, distrahir
nos cafés, nos theatros, nos bailes,
tanto mais quanto multiplicavam-se os convites
para todas as diversões publicas e familiares.
As familias com que iamos entretendo
relações de amizade exigiam que fossemos
quotidianamente a suas casas, como si nos
sobrasse tempo para isso; e, força é confessar,
dispensavam-nos um tratamento quasi paternal.
A melhor de todas as recepções que tivemos,
não obstante o caracter official que a
revestia, foi a do Governador da Luiziania,
esplendido baile no
Royal Hotel, no
dia 8 de, no
dia 8 de
Abril, ao qual compareceram todas as autoridades
civis e militares da cidade em uniforme
de gala.
[86]
A casaca, o clak, a gravata de sêda
branca, o vestido decotado até aonde permitte
a decencia, confundiam-se nos salões
do hotel ricamente adornados, cheios de luz,
escancarados de par em par como um palacio
em festa.
A joven officialidade brazileira, eximia
em
cotillons, expandiu-se a valer
n'essa magnifica
soirée de inverno, fria e
clara, constellada
de botões d'ouro e brilhante, longe da
patria, longe de suas familias, mas no seio
d'um povo que nos amava devéras.
Saráo principesco esse de que ainda sinto
o saibo exquisito ao traçar as reminiscencias
da minha primeira ausencia do Brazil.
Mesa abundantissima e franca, desde a
deliciosa sôpa d'ostras com molho inglez á
mais fina champagne Clicot, com escala pela
mayonnaise de lagosta, fresca e
picante, pelo
succulento
poisson à
l'itallienne, rubro e apettitoso...
e tantos, meu Deus, e tantissimos
outros pratos maravilhosos
inventados
pela
gula epicurista de todas as gerações desde
Luculo até á nossa.
[87]
Volvemos para bordo seria madrugadinha,
tropegos, cansados e somnolentos, palpebras
cahidas, supplicando a frescura d'um travesseiro,
dentro de nossas inviolaveis capas da
Bretanha.
Uma noite brazileira com todos os excessos
da nossa educação e do nosso caracter;
saudosa noite, a primeira de minha vida em
que me enfronhei n'uma casaca irreprehensivelmente
bem feita...
O
Barroso, diluído na
escuridão da noite,
aproado á correnteza que descia rio abaixo
cantando uma melopéa de lenda, o
Barroso―pedaço
da patria longinqua―acenava-nos
com a sua luzinha amarella palpitando ás rajadas
do vento frio.
... E os bailes repetiam-se e nós
viviamos
cercados da alegria communicativa d'esse povo
americano eternamente jovial!
Falemos ainda das mulheres de Nova
Orleans.
Bellas quasi todas, amaveis e insinuantes,
cheias d'uma inexcedivel graça que arrebata e
seduz voluptuosamente.
[88]
As
créoles, ah! as
créoles... ninguem as
vê que não as fique desejando.
Caracteres principaes: tez morena, com
uns tons de rosa na face, olhos muito negros,
criminosos até ao homicidio flagrante, pequenas,
delicadas, flexiveis, aereas quasi, conjuncto
meigo e melancolico, muito sensiveis...
A vaga expressão de seu olhar avelludado
derrama não sei que mysterioso fluido, cujos
effeitos traduzem-se em voluptuosas sensações,
secretos desejos de posse absoluta...
Como differem as chamadas
créoles das
verdadeiras americanas!
Estas―muito rubras, cabello côr de ouro,
olhos azues―são frias, quasi indifferentes
ao amor, egoistas de sua belleza de estatua,
vivendo para o trabalho e para a familia;
aquellas―adoraveis com as suas linhas ideaes,
com a vaga e communicativa melancolia de
seu olhar voluptuoso―fazem lembrar um povo
mystico e cheio de bondade d'algum paiz
nebuloso e desconhecido...
É curiosa a origem da população
créole
de Nova Orleans. Ella descende na maior
[89]
parte de aventureiros canadaenses e
courreurs
des bois―gente ousada e valente, que emigrou
do norte para o sul da America septentrional,
por terra, atravéz de inhospitos desertos povoados
de selvagens perigosissimos. Esses
aventureiros chegaram a Luiziania sem familias,
depois de uma viagem cheia de trabalhos
e fadigas, descansando, por fim, ás margens do
Mississipe. A Luiziania era então colonia
franceza, e o rei, apiedando-se da sorte dos
infelizes immigrantes, que viviam solteiros,
longe de sua patria natal, sujeitos a uma
castidade quasi absoluta, quiz aproveital-os
para a colonisação. N'esse intuito mandou
vir de Paris um
carregamento de
mulheres,
prisioneiras da Salpetrière, que chegaram a
Nova-Orleans em ferros, e onde foram postas
em liberdade e entregues á concupiscencia
da população masculina.
Isso, porem, não trazia vantagens á
colonia, que precisava de gente. Os canadaenses
satisfaziam seus apetites carnaes
sem que augmentasse o numero de habitantes―facto
este que não passou despercebido ao
[90]
directorio da Companhia da Luiziania, cujo
principal interesse era a multiplicação das
almas.
N'estas condições foram dadas outras
providencias,
e, em 1728, chegou a Nova-Orleans
um grupo de raparigas, conhecidas na Luiziania
historica pelas
filles de la
cassette ou
casket girls, mandadas pelo rei para
o convento
das Ursulinas afim de se casarem licitamente.
A experiencia foi coroada de successos. Em
breve tempo começou a crescer a colonia e os
descendentes da
cassette tinham
orgulho em
o serem.
Tal foi a origem humilde dos primeiros
filhos nativos da Luiziania.
Seu sangue é uma mixtura de sangue canadaense
e sangue francez.
A mulher americana do norte é geralmente
bem educada. Muitas vimos em Nova-Orleans,
que conheciam e falavam dois, tres idiomas,
alem do vernaculo.
Preoccupam-se pouco com bailes e modas,
trajam com simplicidade e elegancia, sem
affectação, sem a natural
coquetterie da mulher
[91]
parisiense. Seu divertimento predilecto é a
musica.
O proverbial desembaraço das americanas
manifesta-se a todo instante. Promptas sempre
a repellir com dignidade um ataque á sua
honestidade, ellas se dirigem aos homens em
qualquer parte, na rua ou nos salões, com a
mesma simplicidade com que o fazem ás amigas.
O respeito entre os dois sexos, nas
classes superiores, é um dos principaes caracteres
do povo americano. Habituados, homens
e mulheres, a uma educação livre, vivendo uns
e outros em commun desde creança, as americanas
não se confundem nunca diante dos
homens.
Nos Estados-Unidos o bello sexo é respeitado
como em parte alguma.
Os paes depositam confiança illimitada
nas filhas. Deixam, sem escrupulo, que
ellas saiam a passeio, de carro ou a pé, só
ou em companhia de um amigo da casa, na
certeza de que ellas saberão zelar a sua castidade.
Os raptos e os defloramentos são raros, não
[92]
sei si devido ao temperamento da raça ou si á
inflexibilidade da Lei. O que sei é que, si um
rapaz gosta de uma rapariga de familia reconhecidamente
honesta, não tem mais do que
namoral-a escandalosamente ás barbas de quem
quer que seja, á vista do mundo inteiro, beijal-a
sem ceremonia, como si fossem irmãos, e, d'ahi
a pouco, eil-os casadinhos de fresco,
bras
dessus, bras dessous.
E ai! d'aquelle que violar os preceitos
decretados pelo governo! Immediatamente
vê-se dentro d'este triangulo medonho: o
casamento, o dote, ou a cadeia. A Lei é inexoravel
e a policia exerce uma vigilancia sem
igual.
Informados de taes particularidades do
caracter americano, nós, brazileiros, pusemos
um dique ao nosso temperamento de meridionaes,
evitando o mais possivel os compromissos
amorosos, as manifestações de sympathia
por essas adoraveis
ladies, que, a
falar
verdade, inflingiam-nos os maiores supplicios
com o maravilhoso poder de suas qualidades
physicas.
[93]
Tantalos do coração, eramos obrigados a
conter os impetos ferozes da carne que nos
aguilhoava implacavelmente no delicioso convivio
das louras
miss e das ternas
créoles.
Estão verdes, não
prestam―era a nossa
divisa e d'est'arte escapavamos sempre aos
ataques de tão perigoso inimigo...
IX
O dia 14 de Abril (deixem passar a precisão
chronologica) estava destinado pelo commandante
do
Barroso para uma
excursão fluvial,
scientifica, á foz do Mississipe, onde iriamos
observar
de visu os importantes
trabalhos
hydraulicos, que ahi se procediam sob a intelligente
direcção do notavel engenheiro americano
Mr. Jas. B. Eads, um velho respeitavel, encanecido
no serviço da engenharia, e cujo
nome
está ligado a muitas obras notaveis de seu paiz.
Ás onze horas da noite a barca de passeio
Keokuk largou de Nova Orleans, rio
abaixo,
conduzindo a turma de guardas-marinha,
alguns officiaes e o commandante, com destino
ás
Jetties.
[95]
Uma excellente embarcação a
Keokuk,
especie de pequena cidade fluctuante, muito
larga e espaçosa, avantajando-se em dimensões
aos vapores da Companhia Brazileira.
Tres pavimentos: o superior, coberto por um
grande toldo, onde os passageiros podiam
fumar á vontade; o do meio formando um
salão-refeitorio, ao lado do qual ficavam os
camarotes e o porão, para mercadorias; rodas
á pôpa, systema de locomoção
que não conheciamos;
duas chaminés, e machina possante.
Em semelhantes condições eramos
capazes de fazer a
volta do mundo em oitenta
dias...
Passámos a noite sobre o rio, navegando
á meia força, ao sabor da correnteza.
Lá iamos outra vez para a região dos mosquitos!
Preparámo-nos para dar quixotesca
batalha, apezar da falta impreenchivel do nosso
querido companheiro, o barbeiro de Sevilha,
quero dizer o barbeiro de bordo, o impagavel
hespanhol que tanto nos divertira na caça aos
mosquitos.
Pela manhã, cedinho, estavamos em Port-Eads,
[96]defronte do
escriptorio central do respeitavel
engenheiro.
Café, biscoitos..., e desembarcámos.
O bom velho já nos esperava com o seu
bello ar de urso domestico, barba muito
branca, de barrete e oculos, entre os seus
mappas coloridos e os seus prospectos representando
steamers e as
jetties.
―Folgo bastante em lhes poder mostrar
o plano da empreza ha tantos annos iniciada
sob minha direcção, disse elle com um amavel
sorriso de bonhomia patriarchal.
E começou a desenrolar diante de nossos
olhos uma serie infindavel de cartas hydrographicas,
mappas, desenhos...
Vale a pena se admirar essa obra monumental.
Tratava-se de cavar o leito do rio, n'um dos
braços de sua foz, por modo a effectuar-se a
navegação livremente, na linha da correnteza,
e terem entrada embarcações de grande calado,
desenvolvendo-se assim o já notavel commercio
de Nova-Orleans. Com esses trabalhos
o porto irá melhorando consideravelmente,
[97]
sendo para notar o grande movimento de
navios que entram e sahem durante o dia.
O rio tem pelo menos 16.000 milhas navegaveis
que os americanos dia a dia tratam de
aproveitar dando sahida a innumeros productos
do fertilissimo valle do Mississipe, o qual
abrange cerca de 768.000.000 geiras
das mais
ricas terras do mundo, como elles lá
dizem.
Sua emboccadura é, portanto, a passagem
natural de todos aquelles productos.
Desde 1726 têm sido empregados esforços
inauditos a fim de se aprofundar essa parte do
famoso rio; mas, foi em 1875 que o governo
dos Estados Unidos contratou definitivamente
esse serviço com Mr. Eads, e é bem provavel
que em futuro não muito remoto esteja o porto
franqueado a todos os navios do mundo,
graças á perseverança e aos
esforços de habeis
engenheiros.
A visita foi curta, mas proveitosa.
Tomámos novamente a barca, e ás cinco
horas da tarde atracavamos no forte Jackson,
velha fortaleza abandonada, á margem direita
do rio. Lá estava ainda, immovel e muda, a
[98]
descommunal artilharia que Farragut, o velho
almirante, commandara na guerra sanguinolenta
dos separatistas, que terminou com a
tomada de Nova-Orleans.
Os velhos canhões dormiam seu somno
de bronze, lá dentro, nos corredores escuros
como os de uma Bastilha, e a nós, estudantes
de historia naval, inspiravam não sei que respeito
sagrado. Perante elles falavamos baixo,
como para não os acordar...
A fortaleza é grande, mas só tem a importancia
archeologica que a historia lhe empresta;
não resistiria, talvez, ás modernas baterias.
Opulenta vegetação rasteira cresce-lhe em
derredor.
O seu aspecto é sombrio como o de um
cemiterio: as grossas paredes denegridas e o
silencio que a cerca dão-lhe um cunho mysterioso
de crypta subterranea e produzem no
visitante uma incommoda sensação de abandono
e tristeza. Em cada canto parece surgir
a sombra de um confederado clamando vingança.
Retirámo-nos em marcha funebre, calados
e supersticiosos...
[99]
Dormimos ainda essa noite sobre o rio
para amanhecermos em Nova-Orleans. Já
estavamos com saudade do
Barroso.
Continuaram as manifestações de amisade
ao Brazil.
O neto do imperador, jovem e irrequieto,
embalde procurava fugir ás insistencias da
aristocracia local e por diversas vezes desejou
ter nascido simples burguezinho, como
qualquer de seus collegas.
E digamos aqui, muito a discreção, Sua
Alteza podia ser um bello moço, um digno
cavalheiro, um excellente amigo e camarada,
mas... Sua Alteza era um pessimo principe.
A sua grande aspiração era a vida livre, sem
peias, essa vida alegre e bohemia que se exgota
depressa nos
cafés-concertos e nos
restaurants.
Não gostava de continencias e despresava
o juizo imbecil dos que lhe apodavam de estroina.
O certo é que esse juizo em nada o
compromettia perante o
high-life
americano
que o estimava sufficientemente. Elle era o
representante immediato da familia imperial,
[100]
era o alvo predilecto de todas as manifestações
ao Brazil na grande festa internacional.
Seria ocioso, senão monotono e fatigante,
descrever, uma por uma, em todos os seus detalhes,
com todas as suas côres mirabolantes,
essas manifestações, profundamente fraternaes
e democraticas, com que nos recebeu a distincta
sociedade de Nova-Orleans. Bailes, regatas,
passeios improvisados, concertos, brindes,―e
não raro a tolda do nosso bello cruzador converteu-se
em esplendido salão de baile, acordando
a sons de orchestra e gritos de alegria o
silencio agreste das margens do Mississipe.
É este o unico consolo d'aquelles que
andam no mar em serviço da patria―o repousar
em terra amiga. Vão-se as saudades para
dar logar á franca expansão dos
corações:
a alma do marinheiro transforma-se, como por
encanto, n'um hostiario de alegrias de uma
ingenuidade incomparavel, e elle ri com os
outros, canta e sente-se tão bem como si estivesse
em seu proprio paiz, no meio de seus
amigos e de seus parentes. Encantadora
illusão, que só dura emquanto elle não
abre
[101]
as velas mar em fóra nessa interminavel derrota
de argonautas que vão atraz do bezerro
de ouro da felicidade...
Não direi, não, o que nos divertimos, as
multiplas sensações por que passou o nosso
espirito n'essa Luiziania que o Mississipe
embala com o rithmo nostalgico de suas aguas
côr de barro. Seria desdobrar a natureza
humana tão complexa e mysteriosa.
Vamos adiante, consultemos o caderno de
notas.
25 de Abril...―Estavamos na
Paschoa,
a festa risonha e popular da ressurreição do
Christo. Até então nenhum desgosto, nenhuma
tristeza, nenhuma magoa toldara o céo
purissimo de nossas alegrias. Vagavamos em
mar de rosa, egoistas de felicidade, sereno
o espirito, aberto o coração a todos os influxos
bons. Boa vida, por um lado, essa de quem
viaja sem grandes preoccupações, no bojo de
um navio patricio.
Eis que, de repente, uma nota dissonante
e sombria chamou-nos á realidade pungente
da vida humana: morrera um nosso companheiro
[102]de bordo, o
Leocadio..., que digo eu?
um d'esses heróes anonymos que usam gola ao
pescoço, um pobre marinheiro que a fatalidade
arrebatou de sua terra natal para morrer tysico
em paiz estranho.
Ninguem imagina a dolorosa impressão
que produz a morte de um companheiro de
viagem longe da patria, n'um hospital desconhecido.
Fez-se o enterro com todas as honras devidas
ao obscuro soldado e velho marinheiro,
nascido, por assim dizer, sobre o mar e educado
na escola das tempestades. Tinha sessenta
annos. Era o «cosinheiro da prôa». Sobre
o
seu corpo foi estendido a bandeira nacional brazileira
como symbolo da patria reconhecida.
N'esse dia, conforme já estava assentado,
toda a guarnição do
Barroso desembarcou
a fim de assistir á missa solemne da Paschoa na
cathedral de S. Luiz, o mais importante dos
templos catholicos da cidade, situado na rua
Chartres.
Bem que antiga, essa egreja parece resistir
ainda por muito tempo. Foi o primeiro edificio
[103]catholico erigido
em Nova-Orleans pelos
capuchinhos, em 1718, ao tempo da fundação
da cidade. Tomou o nome de S. Luiz em
homenagem ao rei da França.
Mais tarde, em Setembro de 1723, desabou
sobre a nascente cidade, cuja população
elevava-se a 200 almas, formidavel cyclone, que
arrasou todos os edificios, causando uma mortandade
incalculavel. Narram os chronistas que
foram arrojados á costa trez navios que se achavam
fundeados no porto. Em breve, porem,
a cidade foi reedificada, sendo em 1724 reconstruida
a egreja, essa mesma que ainda hoje
ergue seus torreões vetustos na rua Chartres.
Naquelle anno o territorio de Nova-Orleans
foi dividido em tres grandes districtos
sob a administração dos capuchinhos, dos
carmelítas e dos jesuitas. De então em diante
multiplicaram-se os edificios religiosos, egrejas
palacios episcopaes, conventos, etc.
O convento das Ursulinas data egualmente
da fundação da cidade e é um
estabelecimento
catholico á maneira do de Ruão conhecido
por esse mesmo nome.
[104]
É um dos ultimos conventos que ainda
existem nos Estados-Unidos. Consta de trez
andares e ergue-se á margem do rio, para onde
abre suas janellinhas atravéz das quaes se vê
passar a sombra phantastica das religiosas.
X
Um bello povo, o de Nova-Orleans―jovial,
communicativo, hospitaleiro e sincero. A elle
devemos os melhores dias dessa longa viagem
ao paiz suggestivo e excepcional dos
yankees,
universalmente querido e respeitado por sua
grandeza industrial e por suas bellas tradições
de energia e patriotismo.
E emtanto approximava-se o dia da partida:
iamos embora rumo de norte, levando
comnosco a immorredoura lembrança do Meschasebé,
«le roi des fleuves», e das legendarias
terras que Chateaubriand poetisara nas suas
inimitaveis
viagens. Restava-nos,
porem, o
consolo de que ainda iriamos á sonhada Nova-York
dos trens aere. Restava-nos,
porem, o
consolo de que ainda iriamos á sonhada Nova-York
dos trens aereos e das emprezas colossaes.
[107]
Corações á larga, rapazes! Um homem
é
um homem!...
A saudade, porem, não é uma simples figura
de rethorica, pelo amor de Deus! É um estado
d'alma como a nostalgia, como o amor, como
a tristeza, como a dôr...
A saudade existe, é um phenomeno perfeitamente
real e determinado na ordem dos
factos psychologicos. Não nos venham dizer
outra cousa os senhores neologistas
fin de
siècle.
Por ter sido cantada em prosa e verso, nem por
isso a saudade deixa de ser o que é na verdade―uma
commoção nervosa interessando o mais
delicado e sensivel do coração humano, uma
dolencia vaga, fluctuante n'alma, intraduzivel
como um sonho nebuloso, tocada de doçura e
ungida de tristeza...
Por que uma pessoa tem barba no rosto e já
passou dos vinte annos, segue-se que não deve
ter mais saudade, que deve ser um insensivel,
uma massa inabalavel?
Absolutamente não. A lagrima, expliquem-na
como quizerem os doutores da sciencia,
hade existir emquanto palpitar em nós
[108]
esse musculo que se chama coração, emquanto
a humanidade soffrer e houver um motivo sentimental
para commover os seres dotados de
intelligencia. É talvez uma questão de mais ou
menos intensidade nervosa. Por que tudo é
egoismo neste seculo essencialmente palavroso
e mercantil, deve-se concluir que, em futuro não
muito longe, a raça humana se transforme
n'uma como esphynge, sem affectividade possivel,
ou que o systema nervoso passe a exercer
funcções negativas na physiologia do porvir?
Não o acreditamos...
A lagrima hade existir
per omnia
secula,
e a saudade terá sempre a sua lagrima, como
sentimento superior ás nossas forças.
Chorar sobre o tumulo de um amigo é tão
natural, tão humano como chorar porque nos
separamos de um ente querido. Não desejo
agora, por um velleidade de rabiscador sentimentalista,
fazer a psychologia da lagrima. O
que eu quero é confessar, embora d'isso me
advenha o qualificativo de
piégas, que
não podiamos―eu
e a maior parte dos meus collegas―pensar
em deixar Nova-Orleans sem um demorado
[109]fremito de
palpebras e uma nevoa
humida no olhar triste...
E, dizendo isto, está dito o que nos merecia
a hospitaleira população d'aquella cidade.
Entretanto, ainda não estavam satisfeitos
os luizianenses. Como ultima prova de verdadeira
estima o
Luiziania Jockey-Club
deu-nos
um magnifico baile na vespera da partida.
Tenho ainda na memoria essa derradeira
impressão que me ficou de Nova-Orleans.
Fazia um luar soberbo, um luar tropical,
um luar de legenda, tão limpido e tão claro
que se não viam as estrellas... O
Jockey-Club,
em baixo, fazia um effeito surprehendente
com a sua illuminação de mil côres
rodeando a grande raia das corridas, com o
seu aspecto phantastico de kermesse nocturna,
salpicado de pontos luminosos e galhardetes
em miniatura, immoveis na calmaria da
noite.
Em derredor a mudez solemne da floresta
acordada de instante a instante pelo echo da
musica cortando o ar calmo.
Perto do
Club tinha-se armado um
grande
[110]
estrado para a dansa ao ar livre, sem tecto,
sem toldo, sob o luar.
Cruzavam-se os pares, n'um turbilhão impetuoso,
ao som das walsas americanas e dos
galopes á brazileira.
N'essa noite, e pela primeira vez, conversei
longamente com uma
créole, Mlle...
já me não lembra o nome, um typo ideal de
Walkyria de olhos negros com um extraordinario
brilho nas pupillas,―microscopica, delgada,
flexivel, cintura extremamente fina, certo
geito adoravel de pender a cabeça para os
lados, n'um abandono irresistivel... Toda de
preto.
Dansámos uma quadrilha e ella convidou-me
a passeiar no Prado.
Lá fomos, braço dado, eu muito circumspecto,
teso dentro da minha farda de guarda-marinha,
levado quasi que machinalmente por
essa formosa dama d'olhos negos e seductores,
arranjando a custo umas phrases de effeito,
que eu não teria coragem de reproduzir; ella,
desenvolta e pequenina, muito leve na sua
toilette escura, conduzindo-me
n'aquella esplendida
[111]promenade
au clair de la
lune, para
onde... não sei eu...
Perguntou-me si as brazileiras eram bonitas
e ricas, si no Brazil dansava-se muito, e
que tal nós tinhamos achado as americanas.
Explicou-me então a differença entre
créoles
e americanas propriamente ditas.
Respondi-lhe como pude, exaltando as
nossas patricias, «bellas e ricas, como não ha
eguaes no mundo...»
Parámos. Tinhamos andado seguramente
dois kilometros e não viamos agora senão
a parte superior do
Club, por traz
do arvoredo,
toda illuminada ao longe, como uma
cousa phantastica.
Á proporção que nos afastavamos dos
nossos companheiros a conversa tornava-se
menos animada, e, por fim, já seguiamos calados,
como dois somnanbulos, no silencio da
noite enluarada...
Depois é que vimos a distancia que nos
separava do centro da festa.
Na volta encontrámos outros pares em
doce confabulação, como nós, longe do
ruido.
[112]
Despedi-me para tomar o trem, e ella, a
dama dos olhos negros, disse-me um
Good
bye
tão sentido e tão suggestivo que eu
não tive
geito senão perder o trem.
Good bye! Nada mais doce e
expressivo
que estas simples palavras em bocca de americana.
Uma ingleza talvez que as não pronuncie
com tanta suavidade, com tão sonora
flexão, com tanto sentimento.
Good
bye... Ha
qualquer cousa de avelludado no timbre cantante
com que ellas, as
miss da
Nova-Inglaterra
dizem a sua phrase sacramental de
despedida. O nosso
adeus,
aliás tão laconico e
singelo não exprime tanto, não caracterisa
tão
bem esse estado d'alma que se denomina―saudade.
E, a proposito de―
Good bye, vem-me
a memoria
um episodio de uma simplicidade primitiva
e commovente que a minha indiscrição
de observador tagarella não deixa calar.
Esqueçamos a rapariga d'olhos negros e
narremol-o em toda a sua verdade.
Entre os
nossos companheiros de
viagem
havia um, cuja vida estava cheia das mais interessantes
[113]aventuras
amorosas. Chamava-se
Manoel..., o apellido de familia não nos interessa.
O joven official de marinha, moço de
bella apparencia e excellente coração,
apaixonara-se
por uma Eva Smith muito conhecida
nos cafés-concertos de Nova-Orleans. Até aqui
nada mais natural. Ella vira-o uma vez diante
de um
bock, seus olhos se
encontraram, e,
desde logo, Manoel ficou sendo a menina dos
olhos de Eva. Amaram-se por muitos dias,
gosaram todas as delicias imaginaveis, elle
prohibiu-a de andar nos cafés, ella prohibiu-o
de olhar para outras raparigas, e assim corresponderam-se
de commum accordo, sem que
nunca houvesse entre elles a menor desavença.
―Leva-me para o Brazil, Manoel... (ella
só o tratava por Manoel).
―Sim, filha, depois havemos de ver
isso...
―I love you very much...
―Oh! yess... I think so...
Viviam felizes como um casal de noivos,
longe da cidade, n'um quarto d'hotel, onde
havia do melhor vinho e da melhor sôpa.
[114]
Um bello dia:
Elle―Olha, sabes? O
Barroso suspende
ferro amanhã.?.
Ella (surprehendida)―What do you
say?!
Elle (trincando um
rabanete)―É o que
estou lhe dizendo. Amanhã, por estas horas,
o Manoel vai sulcando o golfo do Mexico.
Ella (cruzando o
talher)―Impossivel!
Por que já não me disseste?
―Para te poupar o desgosto...
―Oh! não, meu querido Manoel, é historia,
tu não vás amanhã...
―Assim é preciso. São cousas da vida...
―Não, não, meu amor (
my
love) tu não
vás, porque eu não quero, do contrario
faço
escandalo, estás ouvindo?
E, ao dizer estas palavras, a pobre Eva
deixou cahir uma lagrima...
Silencio. Manoel continuou a jantar sem
interrupção, muito calmo, com uma fleugma
verdadeiramente britannica. Eva, coitada, abriu
a soluçar baixinho, fungando a mais não
poder, sem se aperceber de que estava fazendo
de um guardanapo um lenço.
[115]
Ultimo acto, e aqui é que está o aproposito.
Scenario: O Mississipe pardo e murmurejante
sob a luz moribunda do crepusculo.
O
Almirante Barroso, immovel sobre o
rio, com a sua mastreação muito alta,
fuméga.
Ouve-se barulho de cabrestante e de amarras
cahindo no convéz. Tremúla a bandeira brazileira
na carangueija da mezena... Ultimos
preparos.
No cáes agita-se uma multidão compacta.
De repente surge á tona d'agua o cepo da
ancora enlameada, pingando um lodo cinzento,
e o navio começa a andar vagarosamente.
A guarnição sóbe ás vergas,
alastrando-se
de um bordo e d'outro, e acena para terra ao
som de―vivas!
Agitam-se lenços na praia, correspondendo
ás saudações de bordo. Um fremito
percorre os que estão no cruzador...
É o momento decisivo.
Um grande rebocador,
The
Warriaro, vistoso
e arquejante, acompanha as manobras do
[116]
Barroso, á distancia de
uma amarra, solitario
e sombrio, envolto n'uma nuvem de fumaça, e
em cuja tolda assoma a figura desgrenhada de
uma mulher.
O cruzador segue á vante, magestoso e
lento, descrevendo uma bella curva no espelho
da agua, e torna a passar defronte da cidade,
apressando a marcha.
As religiosas das Ursulinas lá cima, nas
janellinhas do convento, acenam tambem com
os seus lenços brancos.
E, no silencio da tarde que a nevoa melancolisa,
repercutem estas palavras tocadas de
saudade:
―
Good bye!
―
Good bye! repete a mesma voz
avelludada
como um carinho...
Olhámos uns para os outros commovidos.
Quem seria que se lembrara de levar tão
perto sua despedida aos brazileiros?
A voz era de mulher, não restava duvida...
Com effeito, reconhecemos na figura desgrenhada
que viamos a bordo do rebocador
Eva Smith, a amante de Manoel..., a apaixonada
[117]rapariga muito
conhecida nos cafés
cantantes de Nova-Orleans, cujo enthusiasmo
pelo nosso companheiro tinha chegado a seu
auge.
E quando o
Barroso desappareceu na
primeira
curva do rio, ainda ouviamos, tomados
de uma tristeza infinita, a mesma voz cheia de
desespero, agora abafada pela distancia, soluçada
e plangente:
―
Good bye, Manoel!
Good bye!...
E dizer que a
Dama das Camelias
é uma
excepção na vida sentimental das filhas de
Eva!...
O nosso Armando, que aliás nunca pretendeu
regenerar ninguem, deixou se cahir
n'uma saudade profunda, n'um longo adormecimento
d'alma, de que só accordou no alto
mar, quando já não se avistava um ponto siquer
da costa americana.
XI
Abençoada ilha de Cuba, direi muito
pouco de teus aspectos, de teus costumes, de
tua gente, de tua civilisação, mesmo porque a
nossa demora em tua bizarra capital, foi curta
como um sonho bom. Um epicurista diria que
apenas tivemos tempo de mastigar um
havana,
d'esses que fabrícas aos milheiros e que fazem
a delicia dos consumidores do bom tabaco.
Bellas cubanas d'olhos rasgados e sensuaes,
acreditamos piamente nas coloridas
descripções em que viajantes de todas as
nacionalidades
gabam as vossas preciosas qualidades
physicas, os vossos olhos ardentes, os
vossos cabellos negros, a vossa graça incomparavel
e seductora... Nos oito curtos dias que
[119]
passámos em vossa patria não tivemos a
felicidade,
a gostosa satisfação de vos contemplar
senão de relance, por um acaso
verdadeiramente providencial.
Dizem outros que sois bellas e irresistiveis,
que dansais divinamente o
salero,
que
possuís todos os encantos possiveis, e isto é
quanto basta para que dispenseis o desmaiado
elogio dos que não tiveram a fortuna de confabular
comvosco.
E o leitor, por sua vez, contente-se em
saber que Havana, com suas
calles
irregulares,
estreitas e pacatas, é uma pequena capital sem
capitaes, sobriissima de
diversões populares,
quasi monotona, mas relativamente adiantada.
Não se lhe póde negar certo progresso
material e mesmo uma ponta de civilisação
européa.
Encontram-se nella importantes estabelecimentos
commerciaes, grandes tabacarias que
fornecem fumo e seus preparados a quasi
todos os mercados do globo; excellentes botequins,
poucos hoteis.
O celebre professor Agassiz, no roteiro de
[120]
uma de suas excursões á America, disse que
toda a architectura brazileira é
pesada e
sombria; eu accrescentarei que no mesmo
genero são as edificações de Havana, o
que
não é para surprehender n'uma cidade antiga,
onde se observa ainda o cunho tradicional
da velha metropole hespanhola.
Entre os monumentos archeologicos notámos
a secular cathedral onde (refere a chronica)
estão sepultados os ossos de Christovão
Colombo.
Vimos uma estatua―a de Izabel a Catholica,
n'um grande largo que tem o nome
da santa rainha.
Particularidade interessante: a população
dá a vida por gelados, em consequencia do
calor excessivo e constante a que vive sujeita.
Visitámos tambem (ia-me esquecendo) os
aqueductos que fornecem agua á
população da
cidade. Todos elles vão despejar n'um immenso
reservatorio de pedra inteiriça (como
os nossos diques da ilha das Cobras), cavado
no sólo, formando uma especie de tanque de
grande capacidade para comportar muitos e
[121]
muitos metros cubicos d'agua crystalina. O
sitio onde se acha essa importante obra de
engenharia, lembra, de relance, a Tijuca com
as suas cascatas despejadas do alto de rochedos
inaccessiveis, com a extrema frescura de
suas montanhas verde-escuras, debaixo de um
céo límpido e azul. É um dos melhores
passeios de Havana. A viagem até ahi se faz
em diligencias puxadas á mulas, arriscando-se
o
touriste a chegar sem bofes ao fim
da jornada
longa e sem o attractivo das bellas paisagens
claras do Brazil.
O sol é ardentissimo em Cuba, e, entretanto,
as diligencias partem da cidade pela
manhã e chegam ás onze horas ao reservatorio,
onde não se encontram hoteis nem botequins.
Sua-se por todos os póros e, no fim de contas,
volta-se fatigado, com a curiosidade satisfeita,
mas o corpo moido.
O Passeio Publico... Oh! não falemos
de cousas tristes. Quem já viu o Passeio Publico
da Bahia pode imaginar o de Havana:
o mesmissimo cemiterio dezerto e sombrio, o
mesmissimo abandono criminoso; arvores colossaes,
[122]meia duzia de
castanheiros decrepitos,
e um silencio, um silencio absoluto de arripiar
cabellos. Aos domingos costuma ir chorar
p'r'ali uma banda militar. Só então é
que a
gente se lembra que existe um Passeio Publico
em Havana.
La Havana, de resto, é o
que se póde
chamar uma cidade pacifica, socegada e sem
attractivos. A impressão que ella deixa no espirito
de quem a viu exteriormente é de uma
velha capital decadente, muito cheia de sol e
poeira.
Mas, para que não fosse de todo ociosa e
inutil a nossa visita á Cuba, aproveitámos o
ensejo de ver uma de suas mais pittorescas e
curiosas cidades―Matanzas, onde chegámos
depois de algumas horas de viagem costeira.
Ahi nos esperava o vice-consul do Brazil,
excellente cavalheiro, cujo primeiro cuidado
foi pôr á nossa disposição
vinte e tantos carros
de praça a fim de que não perdessemos
opportunidade
de contemplar o magestoso panorama
do valle de Yumiri, um dos mais bellos do
mundo, cerca de uma legua distante da cidade.
[123] ―Os senhores
vão vêr um bellissimo
trecho da natureza americana, como talvez
não haja igual no Brazil, preveniu-nos o
consul. É uma maravilha!
E lá fomos, subindo e descendo morros,
completamente alheios á topographia do paiz,
cheia d'altibaixos, lá fomos caminho de Monserrate,
n'uma disparada unica por montes e
valles, aos solavancos.
Era quasi noite quando parou o ultimo
carro, e corremos logo á tal «maravilha»
que
o diplomata recommendara.
Aqui têm os aguarellistas
motivo
sensacional
para uma téla rembrannesca:
Crepusculo... Céo pardo com uns tons de
azinhavre muito vagos, aqui, ali, bordando
nuvens... Embaixo a longa extensão concava
do valle afundando-se como o leito de um
grande mar, que tivesse desapparecido, verde
escuro, indistincto quasi a essa hora do dia.
Defronte, no segundo plano, a sombra
opaca de uma cordilheira,―larga faixa de
velludo cinzento―limita o scenario, confundindo-se
com as tintas indecisas da planura
[124]
sideral. E, sobre tudo isso, uma tristeza religiosa,
um vago silencio de abysmo...
Vê-se muito ao longe, de um lado da paísagem,
rasgando o fundo nebuloso do quadro,
uma nodoa escarlate, ao comprido, muito desenhada,
muito escandalosa
mesmo em meio
de
toda essa harmonia de côres esmaecidas...
Ha muito que o sol tombou na sua eterna
circumvolução diurna. A sombra que se
alastra, a pleiada phosphorecente dos pyrilampos,
o silencio absoluto que nos cerca―tudo
inspira respeito: e a gente esquece preconceitos
e doutrinas para, instinctamente,
levantar uma prece á mysteriosa Força que rege
o Universo...
Existe no alto da montanha a modesta
capella de N. S. de Monserrate, sempre
aberta aos crentes, muito branca na sua
despretenção
de nicho d'aldeia, com a sua torresinha
triangular onde vão fazer ninho, no inverno,
as andorinhas do valle.
Cahio de todo a noite, e, no silencio da
estrada que descia em broncas sinuosidades,
regressámos para o hotel, cujo salão
príncipal
[125]
tinha agora o aspecto sumptuoso (dados os
devidos descontos...) d'um refeitorio de convento
em dia de festa paschoal: meza lauta,
vinte variedades de vinho excellentes e tudo
mais que se faz mister n'um banquete finamente
organisado á moderna.
O resto é facil de imaginar: brindes,
hurrahs, charutos finissimos... e um somno
reparador obrigado a pezadelos...
Na manhã seguinte acordámos para outro
passeio não menos agradavel. Era preciso
aproveitar o tempo do melhor modo possivel.
Cometteriamos indisculpavel falta si não fossemos
ver as
Cuevas de Bella-mar, essas
caprichosas
grutas subterraneas, verdadeiros
palacios de crystal puríssimo, que se abrem terra
dentro em toda a opulencia de suas maravilhosas
stalagmites e stalactites. Era mais uma
deliciosa surpreza que nos estava reservada.
Ir á Matanzas e não ver as
Cuevas equivale a ir
a Roma e não ver o Papa. Cumprimos o nosso
dever de viajantes, que não se contentam com
a vaidade infantil de pisar solo extrangeiro.
Cuevas de Bella-mar... Entre os
numerosos
[126]
phenomenos que a geologia registra muitos
ha que ainda estão por ser lucidamente explicados,
por sua propria natureza complexa e
profundamente scientifica.
No terreno da geologia subterranea, com
especialidade, innumeros são os problemas a
destrinçar, e um dos mais curiosos e interessantes
é, sem duvida, a formação das
cavernas,
as excavações produzidas por agentes externos,
pela infiltração natural da agua no solo
calcareo, formando essas caprichosas pyramides
de crystal, que a sciencia denomina
stalagmites e
statactites.
As
Cuevas de Bella-mar formam um dos
mais bellos panoramas que se podem imaginar.
Figure-se um grande tunel aberto no subsolo
e de cuja abobada pendem crystaes multiformes,
cada qual o mais surprehendente, alguns
de tamanho admiravel, emquanto do chão
constantemente humido sobem outros de egual
estructura, ponteagudos quasi sempre, formando,
ás vezes, columnatas brilhantes,
esplendidos
capiteis, tão caprichosamente dispostos
que dir-se-iam architectados por mãos humanas.
[127]A caverna
prolonga-se a perder de vista,
deslumbrante como um palacio encantado, á
luz dos archotes, porque é impossivel percorrel-a
sem luz, e a cada passo uma nova exclamação
de surpreza irrompe da bocca do observador,
espontanea e enthusiastica.
É, com effeito, encantador o aspecto das
Cuevas.
A athmosphera é quasi insupportavel,
apezar da humidade que se reflecte das paredes
da gruta: um calor medonho de fornalha acceza!
É expressamente prohibido tocar nos
crystaes. Um guarda, empunhando um archote,
acompanha o visitante, recommendando-lhe
de espaço a espaço, todo cuidado, toda
cautela para que não dê alguma
cabeçada...
Desta vez tinhamos sabido preencher o
tempo utilmente, compensando as horas perdidas
em Havana.
N'esse mesmo dia o
Barroso fez-se de
marcha
para o
paiz dos yankees, para
Nova-York,
a bella e maravilhosa cidade que o consenso
universal alcunhou de Londres americana.
E... foi um dia a ilha de Cuba...
XII
...Manhã de inverno, fria e nebulosa,
sem uma restea de luz confortavel. Estava
interdicta a nossa curiosidade, pois que amanhecemos
defronte da bahia de Hampton
Road, a essa hora coberta de cerração, cheia
de nevoeiro, impenetravel. Não podiamos,
que pena! ver Nova-York de fóra, do mar,
abrangel-a toda com um golpe de vista,
stereotypal-a na imaginação para todo o resto
da nossa vida. A grande cidade cosmopolita
dos trens elevados e das pontes colossaes
dormia o somno beatifico da madrugada, envolvida
n'um largo capuz de neve atravéz do
qual apenas se podia ouvir a sineta de invisiveis
embarcações que bordejavam demandando
[129]
o porto. Adivinhavamos que muitos vapores
transatlanticos aguardavam, como nós, o momento
azado para fazerem sua entrada.
Felizmente não durou muito esse estado
quasi afflictivo. Por traz do nevoeiro compacto
e lugubre os primeiros clarões da
manhã surgiram como uma apparição
bemdita,
rompendo a monotonia branca da atmosphera,
e pouco a pouco, á proporção que a
neve ia
se rarefazendo, o
Barroso tomava
chegada
muito lento, e Nova-York destoucava-se n'um
fundo luminoso, batida pelas primeiras
irradiações
do sol, ruidosa e alviçareira, toda
cheia de brilhos, como um quadro de malacacheta.
Onze horas. Céo limpo e mar chão―como
se diz nos diarios nauticos. Nem mais
um floco de neve, tudo luz agora, e já podemos
ver cheios da mais intima satisfação, com uma
surpreza ingenua no olhar, o aspecto risonho
da bahia cortada de embarcações á vela
e á
vapor, com os seus longes de verdura matizando
perfis de montanhas indistinctas, muito
descoberta, sem o sombrio magestoso das
[130]
paisagens americanas do sul, bella na sua
simplicidade natural, e, sobretudo, muito clara
áquella hora.
Á direita destacava, á bocca do Hudson,
a grande, a enorme, a colossal ponte que liga
Brooklin á Nova-York lembrando-nos que
realmente tinhamos chegado outra vez á terra
feliz dos
yankees, e d'outro lado
erguia-se,
illuminando o mundo, a estatua da
liberdade,
bello symbolo de bronze, cujo pedestal occupa
toda a ilha de Bedloe.
Era um dia de domingo, um desses dias
de expansão popular, em que, no mar como
em terra, ha quasi sempre uma alegria nova
entre os que passaram a semana a trabalhar,
a lutar pela vida incansavelmente com a consciencia
tranquilla de quem vive honestamente
á custa do proprio esforço. A bahia de Nova-York
tinha o festivo aspecto de um dia de regatas.
Esquadrilhas de hiates, com suas velas
quadrangulares, muito elegantes e asseiados,
cruzavam na barra, aproveitando a fresca do
mar. Passavam barcas de recreio, embandeiradas,
conduzindo bandas de musica, que tocavam
[131]alegremente o
Yankee
doodle.
Á cerração
matinal succedera um sol frio d'inverno, que
dava vontade a gente improvisar pic-nics á
beira-mar, fóra da cidade, longe dos botequins
e das
brasseries, nalgum verde
recanto onde
houvesse bastante quietação e muita agua,
n'um logarejo calmo de suburbio d'onde se
podesse ver ao longe, mas muito ao longe, a
miniatura da cidade soturna e cansada...
O
Barroso tinha fundeado em frente
á
Battery Square e com pouco recebia a visita
official do Consul brazileiro e d'outras autoridades
do paiz, sendo para notar que uma das
primeiras pessoas que pizaram a bordo foi o
reporter do
New-York Herald, a
importante
folha americana tradicionalmente conhecida
no mundo jornalistico. Um cavalheiro
irreprochable,
de cartola e sobrecasaca de panno,
bem apessoado, bigode louro e olhos azues,
verdadeiro typo de
yankee, amavel e
expansivo.
É escusado dizer, n'um parenthesis, que no
dia seguinte a kilometrica folha descrevia,
com uma precisão photographica, o cruzador
brazileiro, sem esquecer mesmo um carneiro
[132]
de estima que traziamos e que o espirituoso
noticiarista incluia na lotação do navio,
emprestando-lhe
qualidades invejaveis. Creio até
que o pobre lanigero figurou na folha
yankee
entre os heróes de Humaytá!
Satisfeitas as formalidades
officiaes da
chegada, trocadas as salvas do estylo, nada
mais nos restava senão ver de perto a bella
cidade.
Nova-York estava quieta, muitissimo
quieta, com as suas praças dezertas, com os
seus parques silenciosos, fechado o commercio
a ponto de não se encontrar aberta uma só
tabacaria, siquer um botequim. Isso, porém,
não nos causou estranheza. Sabiamos que o
domingo nos Estados-Unidos é um dia completamente
inutil, um dia triste para os centros
populosos. Toda a gente dezerta para os arrabaldes
em seus trajes domingueiros. As ruas,
muito largas e compridas, permanecem ermas
e cheias de silencio, entregues á vigilancia
dos
policimen.
Todas as casas commerciaes,
todos os armazens, todas as fabricas, todos
os estabelecimentos publicos conservam-se fechados
[133]e taciturnos, como
n'uma cidade abandonada.
Nova-York, a opulenta e alegre cidade cosmopolíta,
tinha esguichado para New-Jersey,
para Brooklin e para Conney-Island. Toda
aquella multidão laboriosa e ourisedenta, que
nos dias de trabalho se atropella na Broadway,
bebia e cantava nos arrabaldes, expandia-se
largamente nos hoteis ambulantes e nas
cervejarias suburbanas, folgava e ria com
desespero, sem pensar na segunda-feira, sem
se inquietar com o futuro.
Por isso é que não se deparava ninguem
nas ruas, por isso não se ouvia o barulho
infernal das carroças e das carruagens.
O domingo no paiz dos
yankees
é para
se divertir, para se descansar, para se jogar
o
criket, para se passeiar a
cavallo, para se
apostar regatas, de modo que o protestantismo
americano nada tem de commum com o protestantismo
britannico.
Emquanto nos domingos (a dar credito
na chronica) o inglez reza a Biblia no interior
de seu
home, em companhia de sua
mulher e
[134]
de seus filhos, o americano, ou melhor o
yankee
exercita os musculos e bebe cerveja fóra da
cidade.
Não admira semelhante
discordancia,
quando é sabido que a religião protestante
subdivide-se em milhares de seitas. A este
respeito leiam-se os bellos capitulos em que
Mr. Laboulaye (Ed. Lefèvre), estuda, com uma
graça especial e encantadora, cheia de humorismo
e de senso critico, as instituições religiosas
na America do Norte.
Paris en
Amérique
é um dos livros mais curiosos e originaes
que eu tenho lido sobre os Estados-Unidos.
Em taes condições, extrangeiros no meio
de uma cidade dezerta, imagine-se o nosso
embaraço, a triste situação em que nos
collocava
a curiosidade.
Os rarissimos transeuntes que porventura
encontravamos, marinheiros ou vagabundos
que desciam para o caes da Battery, olhavam-nos
com um ar de surpreza, embasbacados,
medindo-nos d'alto a baixo, com si fossemos
uns verdadeiros botocudos de tanga e cocar.
Entretanto, não perdemos a precisa calma,
[135]
e, sem mais tirte nem guarte, saltámos dentro
do primeiro vehiculo que passava, uma velha
carruagem de aluguel, cujo boleeiro custou
devéras a comprehender que desejavamos fazer
um passeio ao redor da cidade.
―Oh! yess! Yess!...
E disparou a trote largo por aquellas ruas
fóra.
De modo que n'esse dia vimos Nova-York
à vol d'oiseau e por um
prisma de tristeza e
monotonia.
Em compensação a nossa demora n'aquella
cidade ia ser mais longa que em qualquer dos
outros portos do intinerario.
No dia immediato, uma segunda-feira,
recomeçámos, sem perda de tempo, a nossa
tarefa de extrangeiros em paiz desconhecido.
Eu, por mim, confesso que Nova-York
produzia-me vertigens. O desejo immoderado
de tudo vêr, de tudo observar, de tudo saber,
trazia-me n'uma inquietação continua, tirava-me
o somno, arrebatava-me á todas as
commodidades, torturava-me o espirito de
analyse. Uma cousa, porem, devo dizer: raro
[136]
é o official de marinha, mormente da marinha
brazileira, que sabe aproveitar o tempo n'essas
viagens ao extrangeiro. Aproveitar o tempo,
entendamo-nos, as horas de folga. Preferiamos
a convivencia dos cafés-cantantes aos passeios
uteis e ao mesmo tempo agradaveis. Um extrangeiro
já teve a coragem de dizer que os
officiaes de marinha brazíleiros levavam o
tempo, na Europa, a frequentar os
conventilhos
e os cafés-cantantes. Até certo ponto
isso é verdade.
Em geral elles pouco conhecem dos paizes
que têm visitado, a não ser em assumptos de
sua profissão, e as suas narrativas entre amigos
limitam-se quasi sempre a recordações de
aventuras amorosas.
Tambem são tão curtas e tão raras
essas
viagens...
Quando se tem a felicidade relativa de
viajar sob o commando de um official illustrado
e curioso como o Sr. Saldanha da Gama, cujos
conhecimentos não se restringem á
navegação
e á artilharia, o aproveitamento é certo. Elle
não é sómente um superior
hierarchico―faz-se
[137]mestre
e sabe proporcionar aos seus
subalternos a maior somma possivel de excursões
uteis e proveitosas.
Uma das nossas primeiras visitas foi á
estatua da Liberdade, na ilha de Bedloe.
O importante monumento ainda não estava
completamente prompto, mas já se podia
fazer uma idéa do que seria elle depois de
concluido. O pedestal, de granito, occupa
quasi toda a ilhota e mede, approximadamente,
15 a 20 metros de altura, 154 pés, desde o
nivel
do mar, formando uma especie de casamata
cuja utilidade não souberam nos dizer. Sobre
o pedestal ergue-se a estatua, em bronze, armada
por meio de vigamentos de ferro, pois
que não é inteiriça.
Conta-se que dentro d'ella realisara-se,
em Pariz, um magnifico banquete de 12 talheres,
presidido por V. Hugo.
Como se sabe, a estatua foi offerecida aos
Estados-Unidos pela França em agradecimento
dos serviços prestados por esta nação
á sua
amiga na guerra franco-prussiana.
O pedestal foi mandado construir á custa
[138]
de subscripções populares, que em pouco
tempo attingiram a uma somma elevadissima.
Não ha por ahi quem não tenha ouvido
falar na famosa ponte de Brooklin (
Brooklin
Bridge), uma das maravilhas da engenharia
moderna, que liga a ilha de Brooklin á Nova
York.
Esta cidade, incontestavelmente o primeiro
emporio commercial da America e uma
das mais populosas do mundo, fica situada
n'uma grande ilha formada por dois braços do
rio Hudson. De um lado, á direita de quem
olha para o mar, um dos deltas, o North River,
separa-a de New-Jersey, e á esquerda o East
River separa-a de Brooklin. A travessia para
qualquer desses pontos faz-se rapidamente, em
barcas que a todo instante largam de Nova-York,
e por preço assaz diminuto.
A principio, quando se projectou levantar
a grande ponte, surgiram mil difficuldades.
Parecia impossivel que se podesse levar a
effeito obra tão arriscada e dispendiosa. Como
assentar as bases do colosso n'uma profundidade
[139]de mil e
seiscentos pés, que é esta a
altura do rio na sua parte mais estreita?
Demais era preciso não prejudicar a
navegação,
construindo a ponte muito acima do
nivel do mar de modo a dar passagem livre ás
embarcações de commercio.
Com tudo isso os americanos metteram
mãos á obra e dentro de alguns annos de trabalho
assiduo os Estados-Unidos contavam
mais uma gloria.
O comprimento total d'essa magnifica
ponte é de uma milha pouco mais ou menos.
As torres onde ella está suspensa erguem-se a
268 pés acima da prêa-mar, de forma que as
maiores embarcações de commercio têm
passagem
facil por baixo.
O
Barroso, cuja guinda era uma das
mais
altas que se tem visto em navio de guerra,
apenas foi obrigado a «acachapar» os
mastaréos
de joanetes.
Atravessa-se a ponte em vagons movidos
á electricidade, em carros de praça ou mesmo
a pé. Paga-se um centimo para atravessal-a
a pé!
[140]
O movimento é espantoso. Cruzam-se
diariamente as duas populações de Nova-York
e de Brooklin, em carros em wagons e a pé,
sem risco de se atropellar, por que a cada
especie de vehiculos corresponde uma passagem
independente e adequada. Os que transitam
á pé têm tambem o seu caminho livre e,
por consequencia, não correm o perigo de
ser pisados pelos carros.
Á noite o aspecto da ponte é feerico.
Logo ás seis horas da tarde começa a
illuminação
em toda ella, de um lado e d'outro,
destacando-se em alguns pontos fócos de luz
electrica, enormes botões de brilhante que
encandeiam a vista.
Vista do mar, então, o effeito é deslumbrante!
Lembra as lendarias pontes de Veneza
cortando canaes, projectando n'agua seus
reflexos luminosos.
Um dos meus divertimentos predilectos
era contemplar Nova-York do alto. Muitas
vezes punha-me lá de cima da ponte de
Brooklin, braços cruzados, n'um extase de
fetiche, a olhar para um e outro lado, acompanhando
[141]com a vista a vela das
embarcações
que singravam no rio, pequeninos, microscopicas.
E punha-me, nessa embriaguez do grandioso
a pensar no progresso dos Estados-Unidos,
d'esse paiz modelo, onde tudo move-se
por meio de electricidade e vapor, onde tudo
é feito ás carreiras, n'um abrir e fechar
d'olhos,
sem a menor perda de tempo; vinham-me a
imaginação escandecida as descobertas de
Franklin, de Fulton e de Edison, as maravilhosas
experiencias sobre o telegrapho, sobre
o telephone e sobre o phonographo, e eu
repetia com os meus botões, mergulhando o
olhar na distancia, abarcando a cidade inteira:―Grande
paiz! Grande povo, gente feliz,
que sabe comprehender a vida e amar a patria!
Como era pequeno o meu paiz, com toda a
grandeza de suas montanhas e de seus rios,
diante do colosso americano do norte!
Cahia-me n'alma uma tristeza de desterrado,
uma profunda e incomprehensivel melancolia,
feita ao mesmo tempo de saudade e
descrença...
[142]
Incansaveis os americanos! Nenhum povo
os excede em temeridade e perseverança. Sequiosos
de glorias para o seu paiz, ávidos de
emprehendimentos que causem assombro ao
mundo, elles tem uma grande qualidade―o
amor á sua terra, o nativismo instinctivo, o
chauvinismo (deixem passar o termo)
incondicional,
absoluto, e é força confessar que,
sem essa qualidade, sem esse egoismo patriotico,
as nações vivem, mas não progridem.
Ainda ultimamente a camara do Estado
de Nova-York approvou, por unanimidade, o
bill que propoz a
construcção de uma nova
ponte de ferro sobre o East River, passando
sobre a ilha de Blackorel, que ligue Nova-York
á Long-Island, e que terá seis mil
metros de comprimento e 46 de altura, com
uma resistencia de 65 kilometros de velocidade
para os trens que a devem atravessar.
É o caso de dizer, parodiando o outro: si
eu não fosse brazileiro, desejaria ser americano
do norte...
XIII
Nunca fui a Londres, apezar do grande e
impaciente desejo que tenho de visitar a sombria
capital britannica, mas estou bem certo
de que Nova-York em muitos respeitos pode
ser denominada a Londres americana.
Toda nova, toda alegre e pittoresca, sem
os bairros immundos que o Tamisa lambe com
as suas aguas putridas, onde boiam cadaveres
em decomposição, illuminada por um sol que
dá vida e confórta, a nova Londres tem um
cunho especial de cidade latina. Como em
Londres, tudo n'ella é grandioso e opulento,
desde a edificação igual, solida e elegante,
até
ás festividades publicas e ás
instituições nacionaes.
[146]
As ruas, longas e direitas, cruzam-se geometricamente
e distinguem-se pela numeração
(
Fourteen street,
Fifteen street etc).
A Broadway é o centro commercial, a rua
de maior movimento quotidiano,―equivale á
City de Londres.
Ahi é que os carros se atropellam, que os
transeuntes se abalroam n'uma confusão burlesca
e indescriptivel de que a nossa rua do
Ouvidor não dá siquer a menor idéa.
Negociantes,
capitalistas, banqueiros, correctores,
operarios e vagabundos, acotovelam-se, empurram-se,
pisam-se os callos e vão seguindo
adiante, sem olhar p'ra traz, carregados de embrulhos,
suando no verão, que costuma ser
muito forte em Nova-York. A gente vê-se
abarbada para romper aquella multidão cerrada,
compacta e egoista.
Um cosmopolitismo sem igual em parte
alguma.
Americanos, inglezes, hespanhoes, francezes,
italianos, allemães, gente de todas as
nacionalidades, até turcos com os seus costumes
exquisitos, confundem-se nas ruas de Nova
[147]
York, enchendo-as em ondas successivas e
tumultuosas, como em dias de carnaval no Rio.
Parece mesmo, á primeira vista, que o elemento
extrangeiro absorve o nacional, tão
numeroso é aquelle. Custa, porém, a encontrar-se
um portuguez ou um brazileiro. Em
compensação a raça latina é
abundantemente
representada por hespanhoes da Europa e da
America. Os mexicanos, apezar da natural
e occulta ogerisa que têm aos americanos
dos Estados-Unidos, encontram-se a cada
passo e distinguem-se logo pelo seu typo original:
estatura média, rosto anguloso e abolachado,
moreno, cabello duro, olhos pequenos;
amaveis. Não perdem occasião de dizer mal
dos americanos, que, entretanto, dedicam-lhes
uma affeição especial.
Uma das cousas mais curiosas de Nova-York
são os trens elevados (
elevated rail
road), a complicada rêde de linhas ferreas
que rodeia a cidade passando em muitos
pontos por cima da casaria, atravessando ruas
inteiras sobre grandes columnas resistentes de
ferro. Partem todas da Battrey Square, ponto
[148]
mais meridional da ilha de Manhattan (onde
fica a cidade) e vão terminar na sua extremidade
septentrional, em Barlem River. Segundo
o relatorio apresentado pela
New-York
Elevated,
o numero de viajantes transportados em
1878 por essa linha foi de 107.079.625. (Sempre
a estatistica como base fundamental do progresso
entre os americanos!). A linha inteira,
que tem seguramente trinta milhas, estava
concluida até Harlem. Os moradores das
margens d'essas estradas de ferro aereas queixavam-se
continuamente da visinhança.
Podéra! Ruido, fumo e fagulhas a toda
hora sobre a cabeça, não são cousas
que
agradem a ninguem. A pobre gente fica em
risco de perder o juizo, pois não!
Felizmente, o que aliás é muito admiravel,
os desastres reproduzem-se rarissimas vezes.
É que o serviço faz-se com inexcedivel
perfeição
e as posturas municipaes verificam-se
enexoravelmente.
As estações são numeradas, como as
ruas:
Primeira
Estação,
Segunda
Estação, etc.
Os passageiros desembarcam em plataformas
[149]
de ferro gradeadas, que communicam
com as estações.
O espirito inventivo dos americanos revela-se
a cada passo nas grandes cidades dos
Estados-Unidos. Em todos os estabelecimentos,
em todos os ramos da actividade
publica se encontra uma applicação nova de
mecanica industrial, um artificio de utilidade
pratica, economico e curioso, uma invenção
engenhosa...
Aproveitar o tempo e economisar os
dollars―tal
é o principio fundamental da sabedoria
yankee.
Um domingo em Coney-Island: nada
mais pittoresco e hilariante, nada mais suggestivo...
Coney-Island aos domingos é para os
americanos o que o Bois é para os francezes e
Hyde Park é para os inglezes―um interessantissimo
microcosmo de incrivel bizarraria, cheio
do vago rumor de uma multidão que passeia,
que canta, que ri e que bebe ao ar
livre, n'um
pêle-mêle
vertiginoso, com as suas
[150]
toilettes claras, com o seu bello ar
despretencioso,
com os seus gestos largos de quem
respira uma atmosphera leve e pura.
Essa pequena ilha constitue a principal
diversão domingueira dos habitantes de Nova
York.
Familias inteiras, burguezes de todas as
castas,
cocottes, affluem para ali
n'esses dias.
Pela manhã, cedo, largam da Fulton Station
grandes barcas embandeiradas conduzindo
musicas, cheias de passageiros. Muita gente
prefere ir por terra, em trens que partem de
Brooklin.
Não ha logar para todos nos hoteis. Improvisam-se
pic-nics defronte do mar, na beira
da praia, formam-se pagodeiras, e muitas pessoas
ha que não se lembram de comer―preferem
a cerveja, o
bock a qualquer especie
de alimento solido.
Vimos dois grandes hoteis―o
Great
Hotel
e o
Gigantic Elephant.
Aquelle é um magnifico estabelecimento,
todo construido de madeira de lei sobre
enorme plataforma que se move em trilhos
[151]
proprios. Novo genero de hoteis até então
desconhecido para nós. N'um dado momento
podem ser conduzidos, como qualquer
tramway
d'um logar para outro.
O
Gigantic Elephant (the monarch of the
architectural world, como lá dizem...)
mede
175 pés inglezes de altura, é dividido em 31
compartimentos, ventilados por 63 janellas, e
illuminado, á noite, por 25 fócos de luz
electrica.
Figura um elephante colossal, de madeira, em
pé, no meio de um jardim. Em cima, no
dorso do monstro, existe um terraço d'onde
se descortina uma esplendida paisagem rasa
e calma.
Quer n'um, quer n'outro, o
promeneur
encontra abundante variedade de petiscos e
bebidas.
As creanças, com especialidade, fazem de
Coney-Island um céo aberto. Ellas, sim, não
perdem os cavallinhos que andam á roda ao
som de um classico realejo seboso, os passeios
aereos, na ponte russa, nas barquinhas, nos
trens elevados...
[152]
Por toda a parte musica, realejos, pregoeiros
de
cousas maravilhosas, gritos,
gargalhadas...
Tiram-se retratos instantaneos, apostam-se
corridas, sobem-se elevadores de duzentos
metros acima do solo, pesca-se, alugam-se
cavallos de passeio... Emfim, Coney-Island
é uma miniatura da vida tumultuosa das grandes
cidades.
O pobre diabo que não fôr esperto e
economico arisca-se a voltar com as algibeiras
cheias de vento...
Á noite enchem-se novamente os trens e
as barcas. Em uns e outros a algazarra torna-se
insupportavel. Canta-se a
Marselheza
em
vozes detestaveis, grita-se, bate-se com a ponteira
da bengala no chão, assovia-se, imitam-se
animaes de toda a especie... Uma loucura!
Entretanto, abençoado paiz! em todas
essas pagoderias não se distingue siquer um
bonné policial. Não ha conflictos, nem desastres.
Tudo corre na maior harmonia, sem intervenção
da guarda civica. Os
policemen podem
[153]
cochilar á vontade: a população
americana é
naturalmente pacata e respeitadora da ordem.
Coney-Island é o complemento necessario
e indispensavel de Nova-York.
Pelo verão reunem-se ali cerca de 5.000
pessoas, segundo o calculo approximado do
consul brasileiro.
Dias depois da nossa chegada, o
Barroso
entrou para o dique de Brooklin, a fim de soffrer
alguns reparos no casco.
Emquanto isto se dava, emquanto a guarnição
occupava-se da limpeza externa do
cruzador, com o cuidado, com o desvelo e com
o carinho mesmo de amigos dedicados, iamos
visitando outras cidades americanas, ligeiramente,
de relance.
Não nos foi dado, porem, diga-se em
parenthesis, ver o mais grandioso espectaculo
dos Estados-Unidos―a celebre cascata do
Niagara, que Chateaubriand pinta com as
maravilhosas côres de sua palheta de artista
inimitavel.
Não tivemos mesmo a felicidade de ver
[154]
Washington, a bonita capital americana, e tão
pouco o presidente Cleveland.
Esse previlegio coube quasi que exclusivamente
ao ex-principe D. Augusto, que aliás
não revelou grande admiração pela
Niagara,
nem pelo presidente Cleveland.
Sua Alteza não era para que digamos
muito amigo da natureza, e menos aínda de
personagens illustres.
Quanto a mim continuei a ver a famosa
cascata por um oculo, nos livros do poeta, e o
Sr. Cleveland, vi-o casualmente no
Daily
News,
no acto do seu casamento realisado a esse
tempo. Pareceu-me um bello typo de
yankee:
cheio de corpo, cabello penteado p'ra traz,
olhar firme, bigode grosso...
Assim, contentámo-nos com visitar algumas
cidades de importancia e tão depressa que
era impossivel apanhar com precisão todos os
caracteres por meio dos quaes se pode apreciar
a vida de uma população.
Vejamos:
Baltimore―Cídade
aristocratica, pequena,
mas extremamente bella na simplicidade,
[155]
no gosto sobrio de sua edificação, muito
asseiada, muito clara, semelhando toda ella,
no seu conjuncto gracioso, uma confortavel
habitação de outomno, fresca e risonha, boa
para se gozar o socego de uma villegiatura sem
preoccupaçães mercantis e utilitarias.
A gente de Baltimore parece viver uma
vida tranquilla e descuidada no calmo interior
de seu
home, longe da mentira
social, longe
de todo o ruido, beatificamente, n'uma paz
invejavel, respirando uma atmosphera livre do
microbio daminho das
civilisações tumultuosas.
Baltimore é uma cidade por excellencia
aristocratica e hygienica, onde os temperamentos
requintadamente pacificos encontrariam
o desejado repouso trespassado da incomparavel
doçura de um clima raro.
Na melhor de suas praças e no mais
elevado de seus pontos ergue-se a estatua
em marmore do grande Washington, geralmente
considerada «um dos mais interessantes
monumentos da America» e inaugurada em
1809. Mede 60 pés quadrados na base e 15
[156]
de altura. Sobre o
pedestal foi
levantada uma
elegante columna dorica de 20 pés de diametro
na base e 15 no cimo, onde branqueja a
estatua do primeiro presidente dos Estados-Unidos,
representando-o no momento de
renunciar a sua commissão de general em
chefe dos exercitos de seu paiz.
Para subir até essa galeria fui obrigado a
vencer duzentos degráos (contados) de uma
estreita escadaria de pedra, em espiral. De
cima vê-se, a olho nú, todo o panorama, realmente
bello, da cidade, que lembra uma d'essas
paisagens hollandezas, muito claras e suggestivas,
taes como descreve Ramalho Ortigão,
e onde destacam, n'um fundo de aguarella,
linhas de arvoredo e reverberos d'agua
parada...
Ouvi dizer algures que as mulheres mais
bonítas dos Estados-Unidos
são as de Baltimore.
Durante as poucas horas que ahi nos
demorámos vimos alguns rostos femininos na
verdade encantadores. É possivel que vissemos
com olhos protectores de hospedes
em
Ouvi dizer algures que as mulheres mais
bonítas dos Estados-Unidos
são as de Baltimore.
Durante as poucas horas que ahi nos
demorámos vimos alguns rostos femininos na
verdade encantadores. É possivel que vissemos
com olhos protectores de hospedes
em terra estranha...
[157]
Era nosso consul n'aquella cidade Fontoura
Xavier, o conhecido autor das
Opalas,
bom poeta e pessimo republicano, que se
apressou em nos proporcionar todas as commodidades
possiveis, franqueando-nos os quartos
e os salões do melhor hotel do logar.
Fez mais: offereceu gentilmente á officialidade
brazileira um delicadissimo almoço ao
qual compareceram diversos estudantes nossos
patricios.
Guardamos bellas recordações de Baltimore.
Philadelphia―Grande
centro de
industria
e commercio. Altas chaminés caracteristicas.
Céo encoberto de fumaça, pesado e
lugubre a certas horas do dia. Aqueductos,
casas colossaes, ruas largas e atulhadas de
barricas e caixotes. Continuo movimento de
carros e tramways. Immensa e grandiosa, a
cidade vista de qualquer ponto elevado. A
lembrança que fica é a de um grande edificio
em construcção, cheio de rumor de machinas
e de operarios em actividade permanente.―Jardim
[158]
Zoologico.―Universidade importantissima,
onde vão estudar moços de todas as
nacionalidades.―City Hall, edificio monumental,
vasto e muito alto, onde funccionam
as repartições publicas: dizem ser o maior dos
Estados-Unidos.
Não ha tempo a perder. Temos apenas
trez horas a nossa disposição, pois que o trem
deve partir para Annapolis ás cinco da tarde
e já são duas...
Leio na taboleta de um bond:
Zoological
Garden... Oh! sim, vamos ao Jardim Zoologico,
a mais completa collecção de animaes,
que já se conseguiu formar. O meu companheiro,
que conhece o Jardim Zoologico de
Londres e o de Philadelphia, opta por este.
Vejo, de passagem ruas bellissimas, esplendidas
filas de casas luxuosas, magnificos jardins
particulares, templos em estylo gothico; descampados...
Mas, a viagem é longa, o tempo escorre
sem a gente perceber, e é preciso contar com a
volta, a fim de apanhar o trem.
Trabalho perdido! Voltámos no mesmo
[159]
bonde, sem ter visto o appetecido Jardim... Zoologico.
Mal tivemos tempo de chegar, embarafustar
por entre os passageiros que se accumulavam
na
gare, e saltar para dentro do
vagon.
E eu fiz o resto da viagem pensando no
assombroso progresso d'aquella cidade enorme,
que ainda em 1791 não era mais que uma
simples colonia a respeito da qual Chateaubriand
exprimia-se d'este modo:―
L'aspect
de Philadelphie est froid et monotone...
Não foi preciso mais de um seculo para que
os americanos fizessem d'ella uma das principaes
cidades industriaes do mundo.
Em Philadelphia tive occasião de ver, pela
primeira vez, bondes electricos funccionando
com a maxima regularidade.
O que será a grande cidade americana
d'aqui a cem annos?
XIV
Abramos capitulo especial para Annapolis,
não que esta cidade, a mais antiga dos
Estados-Unidos, mereça-nos mais que qualquer
das outras, absolutamente não, mas
por uma deferencia bem entendida, por um
recolhido sentimento de gratidão para com a
joven officialidade da marinha norte-americana,
que ali recebeu as primeiras lições de
disciplina militar e dever civico, e que soube
nos acolher em seu seio como verdadeiros
irmãos de armas que eramos.
A nossa visita coincidía com a festa de
formatura dos guardas-marinha, uma das
bellas solemnidades annuaes dos Estados-Unidos
á qual concorrem centenas de pessoas da
[162]
mais elevada sociedade―a fina flor da aristocracia
d'aquelle paiz―movidas pelo nobre
enthusiasmo de apertar a mão á mocidade que
se despede da escola para entregar-se ás duras
lidas do mar.
Antes, porem, de dizer o que foi essa festa
descrevamos, rapidamente, a cidade.
Annapolis é como uma nota dissonante
na civilisação americana. Imagine-se um quilombo
africano, uma grande aldeia cortada de
ruas desiguaes, estreitas e desalinhadas, com
um aspecto sombrio e detestavel de velho
burgo colonial, onde se move uma população
na maior parte negra e atrazadissima―e ter-se-ha
essa antithese da cidade moderna. Bridgetown,
a capital de Barbados, avantaja-se-lhe
mil vezes com toda sua poeira, com toda a
imprudencia e mizeria de sua baixa população.
Vê-se que os americanos têm-lhe certo
respeito e conservam-na esquecida e retrograda
por uma especie de devoção archeologica,
sacrificando
por esse modo o seu bom gosto
caracteristico e o seu tradicional amor ao progresso.
[163]
Insipida, monotona e triste como um cemiterio
de pagãos―Annapolis é um protesto,
um anathema contra a evolução natural das
cousas, uma nodoa antipathica em pleno
mappa da Confederação americana. Nada ha
ali que interesse e desperte a curiosidade senão
a Escola Naval (
Naval Academy) situada
n'uma das extremidades da cidade, á beira-mar.
De anno em anno enche-se de povo; seu
unico hotel, um pardieiro, extravasa, e então
sente-se um fremito de vida nova percorrer
aquellas ruas habitualmente socegadas e tristes.
Passeiam bandas de musica, fluctuam bandeiras
na frontaria das casas, por toda a parte
ouve-se uma vozeria estranha de gente que
bebe e canta nos cafés (arremedo de cafés) e
todas as janellas abrem-se como para receber
o desinfectante da alegria, importado das
grandes cidades circumvisinhas.
Annapolis accorda, então, de seu pesado
somno tumbal para saudar os estudantes que
saem da academia para a vida publica.
O grande acto, a que assistimos, da distribuição
[164]
de titulos, realisou-se n'um dos vastos
salões da Escola, presente numerosissimo auditorio:
familias em grandes trajos de luxo,
altos funccionarios, estudantes...
Ao receberem seus diplomas os noveis
officiaes de marinha foram vivamente applaudidos
pelos seus companheiros, cahindo
sobre elles uma chuva imprevista de flores, no
meio de palmas e gritos de enthusiasmo. E,
começaram os abraços, as
felicitações, os conselhos
e as lagrimas de commoção...
Abrem-se de par em par as portas do estabelecimento
e a multidão de espectadores precipita-se
por todos os lados, feliz, alegre,
desafogada como si acabasse de assistir a uma
festa de amor e justiça.
Ainda não estava concluido o programma.
Em seguida á solemnidade official,―a
festa intima, a festa de despedida que os
naval
cadets (aspirantes) offereciam aos seus companheiros.
Noite clara e constellada. O largo edificio
da Escola de Marinha regorgita de convidados
que se cruzam em todos os sentidos no
[165]
salão do baile, nos corredores, nos
bouffets,
nas ante-salas...
Nota-se em todas as caras certo ar de intimidade,
certo bem estar flagrante, um quer
que é communicativo e bom.
Uma ou outra casaca solitaria, destoando
da linha geral das
toilettes largas
e frescas.
Observo curiosamente o apuro de um official
japonez que franze as sobrancelhas n'um gesto
de enfado.―Por que será?... Julgo de mim
para mim que o pobre camarada não se sente
á vontade dentro de suas calças de panno com
largos galões dourados. A casaca o incommóda
visivelmente. O chapéo armado, elle já
não sabe como o tenha―si na mão, si debaixo
do braço ou mesmo si na cabeça...
Desabotoam-se risos gentis em boccas
purpurinas. Derramam-se essencias preciosas
no ambiente luminoso. Conversa-se alto.
Bellas
miss de face escarlate
abanam-se com os
leques de ricas plumas de edredon. Os leques
e as joias são as unicas riquezas que conduzem
n'um contraste frizante com os vestidos
leves e claros.
[166]
Em um dos lados do enorme quadrilatero,
onde reluziam panoplias arranjadas á capricho,
estava levantado um pavilhão de aspecto risonho,
em cujo frontespicio destacavam em
letras de luz
1887
to 1886
farwell
Era o logar do director da escola.
Começou a dança...
...E á meia noite a musica fazia signal
para a ultima valsa.
Ficamos sabendo que todas as festas
nocturnas terminam invariavelmente á meia
noite, nos Estados-Unidos. É uma velha
praxe que os americanos poucas vezes transgridem.
Annapolis,
blak city―como
te chamam
teus proprios patricios, tu não poderás saber
nunca a saudade que levámos de tí n'essa
esplendida noite clara e constellada!...
XV
O
Barroso continuava no dique, em
Brooklin.
Logo ao regressarmos de nossa viagem á
Annapolis tivemos aviso para uma outra excursão
não menos interessante e agradavel.
West Point era agora o principal objecto
de nossa curiosidade,―West Point, a bella
povoação á margem do Hudson, onde
funcciona
a Escola Militar. Estavamos convidados
para assistir a outra festividade academica―um
combate simulado entre os alumnos do
estabelecimento,―manejos d'armas, exercicios
de esgrima, assaltos.
Comprehende-se a grande utilidade que
necessariamente nos adveria d'essas visitas aos
[168]
estabelecimentos militares no extrangeiro.
Sem nos aperceber, iamos conhecendo,
de
visu,
os diversos processos de ensino pratico, os
methodos mais modernos de educação physica,
e, quando mais não fosse, lucravamos com a
vista de objectos novos e de novas paisagens.
O viajar é uma necessidade quasi imprescindivel
para o espirito e para o organismo.
A alma como que se dilata em presença de
estranhas combinações de côr e de luz.
A
monotonia da vida urbana cansa o espirito,
fatiga-o, consome-o lentamente: é preciso o
grande ar, o ar livre e temperado dos campos,
a natureza em toda sua belleza original, para
que não se morra de tédio e desanimo. O
tempo é limitadissimo e inapreciavel para
quem viaja com desejo de ver e saber.
Muitos ha que preferem morar eternamente
em Paris ou em Londres, no centro da
cidade, asphyxíado pela poeira dos
boulevards,
a gastar economicamente o seu rico dinheirinho
vendo a natureza de perto, gosando as
inaffaveis delicias do ca,
a gastar economicamente o seu rico dinheirinho
vendo a natureza de perto, gosando as
inaffaveis delicias do campo e das praias,
saboreando o clima das montanhas, deliciando
[169]
a vista com o espectaculo das fontes mumurejantes,
dos frescos arvoredos trespassados de
luz...
Eu preferirei sempre a paz absoluta e
invejavel dos suburbios.
E é por isso que, a cada nova excursão
fóra da cidade, eu sentia-me bem commigo e
bem com o resto da humanidade. Voltava
sempre mais consolado e mais leve, como si
sahisse de um quarto muito escuro e abafado
para a claridade larga e bella do dia...
Foi assim que recebi a noticia do passeio
a West-Point.
Como devia ser magnifico o Hudson lá
para as bandas de sua nascente, a qualquer
hora do dia, iluminado pelo sol, calmo e radiante,
ou coberto de nevoa, pela manhãsinha,
ou no silencio da noite, vago e sombrio como
um pantano dormente!...
Era o que iamos vêr.
Seis horas da manhã...
Cahia uma neve friissima, transparente, e
aggressiva como alfinetadas.
[170]
O
Express, pequeno e elegante
cruzador
americano, especie de transporte de guerra,
esperava-nos de «fogos accezas», deitando
fumo pela chaminé.
Remos n'agua e toca p'r'adiante! Pontualidade
no caso.
Estamos á bordo.
O
Express offerece o bello aspecto
de uma
galeota imperial que vai suspender ferro...
Fazia gosto ver a ordem e o asseio que apresentavam
o convéz e a camara.
Tinha-se acabado de fazer a baldeação
matinal. Marinheiros, perfeitamente uniformisados,
occupavam-se em limpar as chapas
de metal; outros colhiam cabos á prôa; outros
lá cima, nas vergas, atavam ou desatavam
andarivelos, muíto rubros, com
os
seus
bonnés
de panno azul marinho onde se lia o nome do
navio, em letras cor de
ouro:―
Express.
A camara―uma sala espaçosa e clara,
elegantemente adornada―occupava um terço
do pontal, a ré, na primeira coberta. Em baixo,
na segunda coberta, ficavam os camarotes e a
praça de armas.
[171]
Servido o
fine cognac, que os
americanos
de bom tratamento não dispensam nos dias
invernosos, o
captain subio ao
passadiço e deu
a voz de suspender. A machina tocou adiante
e o
Express começou a
singrar o Hudson.
Variadissimo o aspecto da paisagem. Ora
o rio se estreita em curvas caprichosas, ora
vai-se alargando, sempre manso, banhando
cidades e aldeias, limpido ás vezes, outras
vezes toldado e sombrio.
West Point fica á duzentas milhas de
Brooklin.
Passámos o dia inteiro e a noite em viagem
para amanhecermos em nosso destino.
Novas manifestações de sympathia. Officiaes
e alumnos da Escola Militar esperavam-nos
com aquelle sorriso affavel de gente hospitaleira,
que logo se traduz em franca e sincera
camaradagem.
A Escola estava acampada perto do estabelecimento,
em exercicios praticos.
Innumeras barraquinhas de lona, alinhadas
em symetria, alvejavam, como um acampamento
de beduinos, guardadas por sentinellas
[172]
que rondavam de arma ao hombro, perfilando-se
de vez em quando em continencia a um
official que passava.
Cada barraca abrigava cinco a seis alumnos
que se rendiam pontualmente na sentinella.
Emquanto um rondava, grave e silencioso,
de mochila ás costas e espingarda ao hombro,
os outros divertiam-se a trocar sôcos, a jogar
o dominó, a apostar corridas, até que o tambor
ou a corneta os chamasse á fórma.
Então, com
uma rapidez extraordinaria, lestos, vivos e fortes,
corriam todos a seus postos, e, em menos de
um minuto, estava formada a companhia.
Cada alumno era um verdadeiro soldado.
Alegres, o sangue a pular-lhes no rosto,
cheios de saúde, tesos, empinados, quadris
largos, espaduas amplas, todos se pareciam em
robustez physica.
Uns rapagões sadios!
Notei mesmo certa propensão dos americanos
para o militarismo. Parece que a educação
militar, a adapção de principios rigorosos
na disciplina do corpo, é o unico meio de
obterem-se homens robustos e cumpridores do
[173]
dever. A Escola de West Point é, sem exagero,
um exemplo raro de estabelecimentos d'esse
genero. E não era sem uma ponta de tristeza
que nós, brazileiros,―raça degenerada e
lymphatica―viamos
crear-se assim uma raça forte
e alegre com todos os caracteres de virilidade
e independencia.
Tive occasião de assistir a uma lucta corporal
entre dois alumnos, competentemente
armados de luvas de camurça, rosto a descoberto.
Pegaram-se a sôcos, um defronte do
outro, calmos e convictos, como si estivessem
commettendo uma nobre acção.
No fim de alguns minutos, o aggressor
estava com o rosto inchado, escorrendo sangue,
os olhos vermelhos, injectados, e a lucta acabava
com um abraço entre os dois contendores.
O mais forte foi acclamado pelos companheiros,
teve o prémio de sua robustez.
É talvez um duro systhema de educação
esse, mas incontestavelmente o mais acertado
e efficaz.
Simples questão de raça...
XVI
Estava terminada a nossa estação de quasi
dois mezes em Nova-York.
No dia 30 de Julho o
Barroso deixou
aquelle porto em direcção a New-Port, outra
cidade dos Estados-Unidos, refugio da população
aristocratica nos quentes días de
verão.
Uma perfeita cidade balnearia, muito fresca e
saudavel, á beira-mar, olhando para o largo
oceano e recebendo-lhe as emanações salinas,
com um Cassino e um Passeio Publico.
Os banqueiros e a gente rica de Nova-York
costumam fazer ahi o seu ninho de verão,
e, de vez em vez, para amenisar a vida monotona
que se leva n'esse pequeno mundo de
simplicidade e conforto, promovem regatas na
[176]
esplendida enseada que orla a cidade e que
n'esses dias de festa maritima toma uma feição
ridente e caracteristica de aguarella ingleza,
com os seus
cutters á
vela, com os seus hiates
de recreio bordejando ao largo como um bando
de gaivotas pousadas n'agua...
Apostam-se milhões de libras. De França
e de Inglaterra principes e lords vêm assistir
e tomar parte no jogo.
A regata é um dos divertimentos predilectos
dos americanos. Todas as cidades maritimas
e fluviaes dos Estados-Unidos têm pelo
menos um club de regatas.
Nota curiosa: em New-Port não se bebe
alcool. É prohibida a importação de
bebidas
que contenham espirito, ou qualquer outra
substancia nociva. Não se encontra um só
botequim na cidade. Para tomarmos um refrigerante,
uma simples limonada, fomos bater
a uma pharmacia! Garantiram-nos que esse
preceito contra o alcool é escrupulosamente
observado n'aquella cidade. Custavamos a
acreditar, mas, emfim, não havia geito senão
ser delicados...
[177]
De resto, uma cidadesinha elegante e socegada,
New-Port. O commercio ahi é quasi
nullo.
No fim de oito dias o
Barroso
deixava de
uma vez o paiz dos
yankees,
fazendo-se de vela
para os Açores.
Já agora não nos doía muito a saudade
desse bello e prodigioso paiz. O regresso á
patria, depois de uma ausencia de quasi um
anno, enchia-nos o coração de alegria.
Não fôra a perda de um companheiro em
Nova-Orleans e voltariamos todos, sem faltar
ninguem, sadios e fortes, cheios de impressões
novas e cheios de esperança.
Voltavamos, sim, mas tinhamos deixado
atraz, em terra extrangeira, n'um cemiterio de
Nova-Orleans, um dos nossos camaradas.
Traziamos uma convicção, e é que
nenhum
povo sabe comprehender tão bem o problema
da vida humana como os americanos dos Estados-Unidos.
A idéa da morte não os preoccupa:
um
yankee triste é cousa
rara e toma
proporções de phenomeno.
Elles, os americanos, são geralmente alegres,
[178]
bem dispostos, amigos do trabalho, compenetrados
de seus deveres, e, acima de tudo,
amam a sua patria mais do que qualquer
outro povo.
A patria e a familia são os seus principaes
objectivos. Menos egoistas que os inglezes,
energicos e resolutos, sobra-lhes tempo e
dinheiro para se divertirem.
Esse povo verdadeiramente democratico
não pede licções a paiz nenhum:
engrandeceu
a custa de seus proprios esforços e dia a dia
prospéra, assombrando o mundo com as suas
emprezas colossaes.
Si a Allemanha representa no seculo XIX
a patria das sciencias moraes, aos Estados-Unidos
compete o primeiro logar na ordem
dos paizes que tem concorrido grandemente
para o aperfeiçoamento e bem estar humanos.
Emquanto as nações da Europa degladiam-se
n'uma lucta continua, perdendo na
guerra o que difficilmente accumularam em
poucos annos de paz, a grande nação americana
deixa-se estar quieta e desarmada, sem
exercito e sem marinha, confiada no seu proprio
[179]
valor, no patriotismo de seus filhos, certa
de que, n'um dado momento, cada cidadão,
cada americano saberá cumprir com heroismo
o seu dever e honrar as suas tradições de povo
independente e forte.
Go ahead! never mind; help
yourself!―eis
a maxima de todo
yankee. Elles
não a
esquecem nunca e marcham desassombradamente
na vida, como quem tem absoluta confiança
no proprio valor.
ceará―1890.
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Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Neste livro surgem
variantes da mesma palavra: "Pancy"
e "Pansy", ou
"Conney-Island" e "Coney-Island",
ou
"Battrey Square"
e "Battery Square".
As variantes foram preservadas de acordo com o original.
Registaram-se duas páginas identificadas como sendo a
96ª,
uma das quais foi corrigida para corresponder à 95ª.